Cristalina
“Pai! O Zé matou um homem.”
É muito mais corriqueiro do que se pensa pais buscarem em alguém o filho que partiu. Comigo não foi diferente. Superado meu trauma – que a rigor não é superável – da perda do meu Velha (vide postagens 25 a 29, de 20 de novembro 2013), dei início a angustiante processo: substituir quem é insubstituível, resgatar quem não volta jamais.
Submetida a três cirurgias de cesariana e tendo feito laqueadura na última delas, Tereza não mais podia engravidar – e nós dois não cogitávamos reversão, viável do ponto de vista técnico-cirúrgico mesmo àquela época (1983). Alucinadamente, dei para percorrer os orfanatos (quase todos) de Brasília e, quando em viagem a serviço do Bacen ou em caráter particular, os de outros estados atrás de uma criança que fosse parecida com meu filho, no propósito (quem sabe) de adotá-la.
Transcorrido algum tempo, limiar dos anos 1990, viajávamos a Cristalina, município goiano distante cerca de cem quilômetros do Distrito Federal, onde compraríamos pedras que a própria denominação da cidade já o indica. Encontro-me no carro lendo jornais; Tereza, nas lojas típicas das cercanias. Dois garotos de dez e doze anos surgem na janela do lado do motorista, assustando o leitor, e lhe formulam o convite: “Moço, quer conhecer a mina do meu pai?” Naquele ambiente, descabia inferência de se tratar da mulher do pai deles, a mina, gíria então usada (pensando bem, vogava um pouco antes, 1960/70) para garota, namorada, menina.
Cuidei que iria deparar cristais brutos, não de todo lapidados, e comprá-los a preços mais em conta, abaixo pois dos praticados nas lojas, sempre cheias de turistas na desigual concorrência dos dólares. Tereza saía da loja e voltava para a nossa camionete Santana quantum. Ao saber da intenção dos meninos, hesitou e passou a ideia de que a incursão tinha tudo para ser uma fria e, nesse momento, eu também fui tomado por um certo temor. A paranoia da população brasileira com segurança vem de longe, anda batendo nos trinta anos ou um pouco mais de existência, e ainda vai perdurar muito.
Resolvemos de qualquer maneira acolher a proposta.
Havia que sair do “centro nervoso” da cidade e atravessar a estrada, a pista, a “BR 40”. Chegamos próximo ao local anunciado, faltando só uma ladeira de terra de uns cem metros de comprimento. Numa tática que se nos afigurara a mais recomendável, machismo ou feminismo à parte, eu subiria a pé com os dois meninos até a casa deles, que apontava solitária lá em cima do morrote, e Tereza permaneceria no carro para facilitar a rota de fuga.
Zé e Maria, candidamente sentados em pedras à guisa de banco, pareciam já aguardar o trio – o potencial comprador e os dois vendedores mirins despachados pelo casal da mineração para a labuta diária (senhora candidata, senhor candidato, o Brasil precisa acabar com o trabalho infantil. Urgentemente). Ao me certificar de que ali não se corria perigo algum, gritei para que a Tereza ligasse o carro e subisse ao nosso encontro.
A mina de cristal não era tão perto dali. Todavia, o que desde logo nos ofereceram de mercadorias era o suficiente, não carecíamos de mais nada, quartzos de todos os tamanhos, de faces límpidas e fascinantes. Nossa conversa fluía, brincadeiras e gargalhadas eram ouvidas enquanto separávamos as pedras que iríamos levar. Prenunciava-se negócio interessante às partes, sendo impensável enganar aquela gente simples e cordata. Não sei o que acontecera comigo mas lembro que me levantei, dirigi-me à porta do casebre escuro, dois ambientes apenas, paredes manchadas. Impressionado com o vulto estático naquela saleta penumbrosa, olhei para a Tereza e disse:
“Vem ver uma coisa aqui!!!”
Marcos Martins
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