Dr. Farani (IV)
Quase todos os apartamentos construídos nas quadras 300 da Asa Sul, antes e um pouco depois da inauguração de Brasília, eram amplos, espaçosos. Os moradores, ocupantes de imóveis funcionais (às vezes, referenciados por institutos de sigla engraçada, IAPB, IAPI, IAPC, IAPETEC), não pagavam imposto predial, tudo se misturava contabilmente nas contas da União.
Havia sala de estar (algumas do tamanho de um vagão de trem, com pilastras, um dos meus traumas de infância), sala de jantar (nunca se dizia nem se diz “sala de almoçar”, será que por influência dos norteamericanos, restritos a break-fast – dinner?), corredor, quartinho de tralhas e cacarecos, área de serviço, dependência completa de empregada, não raro insalubre, ventilação nenhuma, uma senzala urbana, felizmente desprezada na atualidade pela classe média esclarecida, daí não mais constar nas plantas arquitetônicas modernas ou modernosas.
Interessante é que suíte era “coisa para rico”, banheiro social apenas unzinho, cuja porta geralmente podia ser aberta por fora mediante prosaico giro da chave de reserva, com fecho quadrado. E foi se valendo desse expediente que o Lelio – àquela altura, mais possesso ainda – lograra adentrar o recinto, onde o filho homem mais velho, conhecido por Marcos, sentado no vaso sanitário com o tampo arriado à guisa de poltrona, fumava tranquila e gostosamente o cigarro aceso pelo Dunhill, brilhante com sua luz dourada no bidê que hoje não existe em lugar algum deste país.
Até então alheio àquela frenética procura assistida pelos irmãos (vamos brincar de tá quente-tá frio?), o garoto magrelo, descoberto no recinto esfumaçado, intuiu que tinha entrado numa fria pois o clima estava quente, sua batata começava a assar. No trono mesmo, lívido e assustado, acompanhou os movimentos do pai, que na juventude levantava peso de mais de 100kg, pegando a escova de cabelo (como esquecer aquele cabo azul da cor do mar – obrigado, Tim Maia) para desferir um bolo em cada mão do fumante desapercebido.
Os gritos de dor fizeram que a mãe fosse de imediato acudir – e chorar por quem acabara de ser submetido à palmatória – as mãos juvenis, pele vermelha, já se encontravam totalmente empoladas. Tremendo ódio do meu pai, tremenda vontade de fugir de casa, plano que os filhos inconformados anunciavam debaixo do bloco mas nunca punham em prática. Rebeldia tinha limites.
Será que o açoite resolveu? Foi eficaz o castigo? Muita conversinha, cadê o Dr. Farani?
29 de agosto de 2014
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