Memórias/Memorialista (LXVI)

Vejo-me ao espelho e encontro o rosto do meu pai. Porém, se acaso, numa gaveta,
descubro uma fotografia antiga, logo me alegra a memória daquela tarde,
e volto a ter a idade que tinha quando a imagem foi fixada.
– José Eduardo Agualusa – 

Meu único ponto de identidade com o Luiz Fernando Veríssimo é que tínhamos avô de nome Sebastião. Infelizmente, a coincidência cessa aí. Desatino registrar que ambos somos dados às letras: as deles, pelo brilhantismo e genialidade, são garrafais, estampadas em outdoors para fruição geral; as minhas, opacas, babélicas, vislumbráveis apenas pelo microscópio eletrônico de alta precisão.

Como é da ciência de quem arriscara ler as postagens anteriores deste tópico memorialista do pampa gaúcho, a história é contada pelo Erico Veríssimo (pai do Luiz Fernando) que no Solo de clarineta, vol. I, aborda em densos trechos a trajetória do seu pai, Sebastião, o avô acima referido e filho do Franklin. Eis a linhagem geracional – Franklin/Sebastião/Erico/Luiz Fernando.

A palavra é arrogada pelo Erico.

“(…) numa úmida manhã cor de ardósia, vimo-nos um diante do outro na estação ferroviária de Cruz Alta. Meu pai tinha na cabeça um chapéu de abas largas, de qualidade ordinária, que lhe ficava muito mal. Cobria-lhe o corpo um grosseiro poncho de campanha, cor de chumbo, tão comprido que sua fímbria tocava o pavimento encarvoado da plataforma. A seus pés jazia uma mala barata com um pedaço de barbante amarrado a seu redor. Comparei o homem que tinha então na minha frente com o Sebastião Veríssimo dos tempos de caviar e champanha. Recordei as suas finas camisas de seda, os seus vinte e tantos pares de sapatos, as suas incontáveis gravatas, os seus perfumes, as roupas de boa casimira inglesa ou de tussor de seda feitas sob medida no melhor alfaiate de Porto Alegre… A comparação me doía.”

Quem nesta encarnação já não ouviu filhos relatarem a decadência do pai outrora tido por super-homem? Quantos indivíduos podem assegurar que a figura paterna, de ordinário marcada por idealização a partir da infância, não se esboroa no decurso da adolescência?

“E agora, no momento em que descrevo essa cena, pergunto a mim mesmo se naquela remota manhã de outubro de 1930 eu sentia algum ressentimento para com aquele homem, por ele não se ter portado de acordo com a imagem ideal que eu tinha dele na mente, nas minhas mais belas fantasias filiais. Se tinha — concluo —, esse sentimento se diluía num vasto, profundo lago de compaixão, em que eu quase me afogava. Lembro-me de que naquela hora de despedida procurei não julgar meu pai, mas simplesmente amá-lo, tentar compreendê-lo, aceitá-lo como ele era, com todas as suas qualidades e defeitos.”

Presentemente, comenta-se que filho não respeita pai, em casos extremos afrontas verbais ao genitor evoluem para agressões físicas, terminando o incidente em delegacia, BO, IML… Com os Veríssimos Erico e Sebastião, não aconteceram “vias de fato” nem lesão corporal. A paulada no velho foi desferida na seara moral, materialidade caracterizada em missiva, uma força nas comunicações interpessoais no Século XX.

Gare Saint Lazare_Claude Monet

“Veio-me à mente uma carta dura que eu lhe escrevera havia alguns anos, ao cabo duma luta interior em que razão e sentimento entraram em conflito. Nessa carta ‘lógica’ eu o censurava pelo seu comportamento, pedia-lhe mesmo que se afastasse da cidade, pois não queríamos que sua presença e seu comportamento pusessem em perigo os esforços que fazíamos em prol duma vida nova. Ele lera essas palavras, que deviam tê-lo ferido fundo, marcara encontro comigo num café, tirara a carta do bolso e me dissera, simplesmente, num tom de voz sentido que jamais poderei esquecer: ‘Por favor, rasga esta carta’. Eu obedeci, sem coragem de fitá-lo nos olhos. E ele acrescentou, terno: ‘Faz de conta que nunca a escreveste’. E não tocamos mais no assunto.

“Agora ali estávamos calados, um diante do outro, a olhar furtivamente, de quando em quando, para o relógio grande da estação.”

No plano da economia, das finanças domésticas, normal é pai sustentar filho, ser fiador do contrato de locação da kit onde o burguesinho no máximo uma vez por mês irá lavar a louça, trocar lençol, fronha, toalha. Não tem sido infrequente, de outra parte, filho suprir pai, emprestar-lhe algum dinheiro em quadros de escassez e cumprir obedientemente diligências expedidas pelo pai detentor ainda dalgum resquício de autoridade.  

“— Ah! — exclamou meu pai de repente. — Vou te pedir um favor. Paga ao meu leiteiro os quarenta mil-réis que lhe fiquei devendo, sim?

“— Não se impressione, pago amanhã — respondi, mesmo sabendo que todo o dinheiro de que dispunha no momento eram uns magros trinta mil-réis.

“Poucos minutos depois o Velho deu uma palmada na própria testa.

“— Que pena! Esqueci em casa a lingüiça frita que mandei preparar especialmente para a viagem…

“A jornada era longa e eu estava certo de que meu pai não tinha dinheiro suficiente para fazer as refeições no carro-restaurante. Ofereci-me então para ir buscar o precioso pacote. Mas… haveria ainda tempo para isso? O trem, prestes a chegar de Santa Maria, devia partir dentro de menos de quinze minutos para o norte. Saí apressado para a rua, entrei no primeiro carro de aluguel que encontrei, dei um endereço ao chofer e pedi-lhe que tocasse o calhambeque a toda a velocidade. Entrei afobado na casinhola de tábua onde meu pai vivera durante aqueles últimos meses, e tive a surpresa de encontrar lá dentro alguns fantasmas familiares. Contrastando com a pobreza do ambiente, lá estavam nas paredes — relíquias do Sobrado — alguns quadros com fotografias de antepassados nossos. Tive de súbito a impressão de que eles me olhavam com essa intensidade implacável dos retratos. Ergui a cabeça e vi as imagens de meus dois avós paternos — dois pares de olhos expressivos que pareciam falar, perguntar-me coisas… Veio-me então — como aconteceria em tantos outros momentos da minha vida — uma incômoda sensação de culpa. O Dr. Franklin e D. Adriana pareciam responsabilizar-me por tudo quanto havia acontecido a seu filho mais velho. Parodiando Caim (ou será que estou inventando isto agora?), perguntei-lhes mentalmente: ‘Serei acaso guardião de meu pai?’. Não tive resposta. Olhei em torno e vi uma série de utensílios e móveis que me deram uma idéia da pobreza em que vivia o velho Sebastião: uma mesa de pinho sem lustro, duas cadeiras guenzas, uma panela e uma chaleira de alumínio, ambas amassadas, um toco de vela metido no gargalo duma garrafa, revistas e jornais velhos espalhados no chão de mistura com baganas, paus de fósforos e trapos. A cama era um catre coberto por um lençol grosseiro e encardido. De novo olhei para o retrato dos meus avós. Mas que podia eu fazer pelo meu pai se nem sequer sabia que fazer com minha própria vida?”

Nada mais duro e mortificante para um filho do que vivenciar o ocaso do pai. Não falo da degenerescência física, essa é natural, indefectível. Me refiro ao estado de abandono do pai, solitário, falto de amigos, andrajoso, sem nenhum brilho nos olhos. Abstraiamos a angústia da visita do Erico ao muquifo do pai e nos concentremos no desfecho do reencontro na gare.

Ah! A lingüiça… Não havia tempo a perder. Estava em cima da mesa, envolta numa folha de jornal enodoada. Apanhei o pacote, lancei em torno um olhar semimasoquista, saí para a rua, entrei no automóvel e gritei para o chofer: “Toque depressa para a estação! Preciso chegar lá antes da partida do trem que vai pra São Paulo”. O velho Ford-de-bigode foi-se aos solavancos pela rua de terra batida, cheia de regos, buracos e pedras. Quando cheguei à estação verifiquei que o trem do norte já se pusera em movimento. Olhei para as janelas dos carros, procurando meu pai. Por fim avistei-o. Estava de pé na plataforma do último vagão e me fazia sinais. Corri para ele, entreguei-lhe a lingüiça, apertei-lhe rapidamente a mão… “Adeus, meu filho!” Mal pude responder. A canseira da corrida e a emoção da despedida me trancavam a voz. Fiquei parado, vendo a figura paterna ir aos poucos diminuindo, à medida que o trem se afastava. Com uma das mãos o velho Sebastião me acenava, e com a outra apertava contra o peito a lingüiça frita. Por fim o comboio desapareceu numa curva.

“Nunca mais tornei a ver meu pai.”

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06/11/2020
(324)
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