Memórias/Memorialistas (LXXIII)
Poucas coisas são tão covardes como alguém maltratando um animal. Por nada, pelo prazer de vê-lo sofrer. E, principalmente, porque é menor e mais fraco. São valentões de araque que se borram diante de qualquer adversário à sua altura.
– Nelson Motta –
No Ataque dos Cães, filme carregado de sutilezas, metáforas e candidato ao Oscar, há uma passagem, curtíssima mas de causar desconforto – o protagonista, cowboy fora da padronagem, maltrata o cavalo dele, que se mostrava rebelde.
Ainda com essa tocante imagem na minha mente, tive como que uma surpresa. Na releitura das fenomenais memórias do Paulo Duarte (não se pode esquecer, um dos grandes responsáveis pela fundação do órgão de cultura do estado de São Paulo), reencontrei texto em que a cena mostrada na fita se apresenta riquíssima no Selva Oscura, volume III, desmembrada quase que num capítulo inteiro do livro.
Atentem para a narração inicial.
“(…)”Em geral, o trabalho começa de manhãzinha e segue pelo tempo que der, ainda que o dia inteiro. E a maneira de domar os animais chucros é ou era completamente diferente num e noutro país. O amansador norte-americano objetiva transformar o cavalo num amigo de todos os dias, num companheiro, um colaborador do seu trabalho diário, ao passo que o peão brasileiro, o seu fim é diferente, é transformar o cavalo num escravo, do qual se exige tudo e muito pouco se lhe dá. O cow-boy norte americano alimenta bem o seu cavalo com carinho inclusive, ao passo que o brasileiro o tem como um instrumento de trabalho, mas um instrumento que se atira no pasto, depois de usá-lo com pouco ou sem o menor cuidado, como se fazia com os escravos antigamente.
“Pelo menos assim era, em geral, nos meus tempos de menino ou de adolescente, porque a mania brasileira de arremedar é como as mutações em genética, raramente para melhorar.
“Isso eu só aprendi muitos anos depois, àquele momento em que fui passar minhas férias na Franca, depois de uma ausência de quatro anos, o rodeio que nos era anunciado continuava esse mesmo que eu sabia, já desde a nossa vida em Cristais.”
A introdução já nos dá ideia de quanto o Paulo Duarte, posicionado na condição de escritor nos anos de 1970 porém com os olhos voltados para os anos de 1920, repudiava o tratamento doméstico infligido pelos peões brasileiros a animais da zona rural (paulista) há coisa de um século. Há de ver a descrição dos personagens, o que me fascina na literatura.
(…) Ao lado de um grosso tronco estendido sob o telheiro fomos encontrar o tio Isaac em palestra com um caboclo magro, de barba falhada um tanto crescida, chupando vagarosamente um toco de cigarro de palha que apagou depois, guardando-o por detrás de uma orelha.
“Era um homem espigado, vestido com simplicidade e pobreza. Dependurado no pulso direito, um grosso rabo-de-tatu com que, às vezes batia na perna, enquanto conversava. Estava descalço. Afivelada ao calcanhar de um pé, uma espora de enorme roseta, que tilintava ao andar do dono. A calça enrolada na perna até um pouco abaixo do joelho, suja de lama e remendada em vários pontos era presa à cintura por uma correia estreita, dela dependurada uma faca de cabo de chifre, enfiada numa bainha de couro amarelo. Não vestia paletó. A camisa desbotada, aberta, deixava ver um peito ossudo de cor de folha seca, cheio de pelos. O cabelo um tanto encaracolado cobrindo parte das orelhas, cujo interior vomitava um punhado escuro de pelos, há muito não enxergava a sobra de uma tesoura.
“Estivemos ali conversando durante algum tempo, até que os campeiros, abrindo a porteira, despejaram pelo curral a dentro um grupo de animais.
– Olha lá o cavalinho, indicou com o dedo o tio Isaac, ali, aquele atrás do cocho. E gritando a um dos camaradas:
– Toca, João, toca prô curral do tronco, prá pegar; depressa, lerdo.
E dirigindo-se ao peão:
– É bonito ou não!
– Superior! Respondeu pausadamente o caboclo, com um meneio de cabeça. Chegô mêmo no ponto de leva espora. Tá ali que tá pedino arreio na cacunda…
Meio avermelhado, não de grande estatura e de formas redondas, pêlo liso e brilhante, denunciando uma longa estadia em farta invernada, apresentava o cavalo um lindo aspecto de animal novo bem tratado, mais evidente ainda pelo andar elegante e majestoso.
– Vão ajudar os homens, gritou-nos t’Isaac, passando ele também para o outro curral na cola dos animais.
Os campeiros ajudados ou desajudados por nós, apartaram o cavalo do resto da tropa, fazendo-o penetrar no estreito corredor do ‘tronco’.”
O suplício em todos os seus contornos ainda estava por vir. Curioso e sintomático é que em nenhum momento o Paulo Duarte, no descrever o acontecimento, emprega animália, possivelmente porque, se o fizesse, adotaria o termo em referência aos domadores. Entram novos participantes.
“O Bernardino, o velho campeiro da fazenda, um mulato magro, de meia-idade, cheio de bazófia, mais medroso do que uma menina romântica, sempre a rir, mostrando as gengivas vermelhas e completamente nuas, correu por fora da cerca de tábuas com uma grossa trave nas mãos, que, ligeiro, atravessou-a entre o animal e dois esteios fronteiros, no sentido da largura do corredor, tapando-lhe a saída e impedindo desse modo que o cavalo, impedido de virar pelo estreito da prisão, retrogradasse um só passo. Ficava assim imobilizado, à mercê do domador.
“O Jerônimo peão, deixando nesse momento o animal preso, veio até a parede do depósito que separava os dois currais e, tirando dentre um monte de arreios no chão, uma correia de couro cru tendo presa a um dos extremos da dobra costurada, uma forte argola de metal, voltou ao ‘tronco’ passou por baixo da cerca, frente a frente ao cavalo.
– Vancê pode me ajuda a pô o barbicacho no bicho? Interrogou ao Bernardino.
– É pra já, disse o mulato no seu riso vermelho e arreganhado.
“O cavalo, nervoso e assustado, escarvava o chão, sacudindo a cabeça violentamente todas as vezes em que os dois homens tentavam adaptar nela um cabresto de couro trançado. Afinal, após algumas baldadas tentativas, conseguiram vagarosamente, aproveitando alguns momentos rápidos de atonia, vestir-lhe a cabeça com a escravizante touca.
“O animal tornou a reagir com arrebatamento, cabeçadas a torto e a direito, com fortes encontrões nas vigas indiferentes do ‘tronco’, acabando afinal por conformar-se com o grosso cabresto.
“O Bernardino, ajudado por outro camarada e pelo Juca, puxou-o com toda a força para a frente, obrigando o cavalo, a madeira, apesar da reação oposta pelo animal, resistindo com o pescoço alongado, as pernas dianteiras esticadas e firmes ao solo, as ancas abaixadas, nas traseiras quase horizontais, pés sumidos no chão, mostrando a disposição de resistir ao manejo. O Jerônimo, aproveitando uma oportunidade, passou a tira de couro cru por dentro da boca do animal e, após com ela descerrar-lhe os compridos e largos dentes, volteou-a pelo maxilar inferior, firmou uma extremidade na outra por meio da argola, constituindo desse modo uma espécie de freio que abrangia grande parte da queixada.
– O barbicacho tá pronto! exclamou triunfante. Agora é pô o laço mais a rédea e depois quebrá o bruto. Ó menino, gritou a um dos moleques, tráis aí dos arreios, a rédea e o laço.
“O moleque foi lesto e o peão tomando o par de grossas rédeas, passou com precaução pelo pescoço do cavalo e, com uma pequena correia, amarrou-as por baixo do pescoço, para evitar que as rédeas saíssem pela frente com os movimentos bruscos do animal antes de ser montado. E, tomando em seguida uma das pontas do comprido laço, amarrou-a fortemente à argola do barbicacho.
“Agora tira a prancha prá ele afastá, que eu quero mostra por onde a cutia dá o assovio.”
Paro aqui.
Como estamos em dezembro, mês de 13º salário, segue-se uma nova postagem, a religar o assunto.
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29/12/2021
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