Memórias/Memorialistas (LXXXV)
(…) o rito da morte concentra e compacta toda uma vida, num momento único. E o luto transcende o rito. É que a admiração e o afeto continuam existindo, apesar da perda física.
– Luiz Carlos Azedo –
Já distante e um pouco cansado das matérias jornalísticas sobre as Olimpíadas – meritórias pelo que realçaram de bom e evolutivo (vitórias das mulheres em todos os aspectos) -, volto a me esconder no blog do Teatro Mapati para “roubar” em sequência mais trechos de livro do Pedro Nava. Médico e escritor, o maior memorialista do Brasil, que, sessentão/setentão, nos presenteou com sua história vivida aboletado nas ambulâncias e pontificando nas clínicas e hospitais do sudeste do país.
Ainda sobrevoo sem gelo nas asas o quarto volume, Beira-Mar, das Minas Gerais para o Rio de Janeiro, tantas vezes aqui evocado, assim como os três tomos antecedentes. Reluto em largá-lo e devolvê-lo à estante no cumprimento de minha missão autodelegada de extrair trechos relacionados com a Medicina, sabendo que essa transposição per se desvela alta literatura.
O Nava fala da beleza e da força do corpo humano (de novo, as Olimpíadas e os/as atletas participantes), da jovialidade estampada no físico que se vai transmudando por força da degenerescência, com os médicos e médicas a tudo assistindo na fila do gargarejo.
“Mas fantástico na vida do médico é o que ele vai tirando da experiência adquirida dia a dia na exploração dessa coisa prodigiosa que é o corpo humano. Ele é sempre admirável. Admirável no crescimento, no milagre da adolescência, na saúde plena e na euritmia da idade madura, da vida em sua pujança, seu transbordamento na reprodução. Igualmente admirável na impotência, nos desequilíbrios da velhice, na senectude, na cacoquimia, na doença, na desagregação e na morte. Tudo isto tem harmonias correlatas e depende de trabalho tão complexo para criar, como para destruir, para fazer a vida e fabricar a morte. Temos de reconhecer essas forças da natureza e delas tirar nossa filosofia médica e nossa lição de modéstia. Cedo compreendi que nós, doutores, podemos, quando muito, alterar e modificar a vida pelo ferro cirúrgico e pelo veneno remédio (…). O grande equívoco de todos – doentes e médicos – é julgar que prolongando a vida por alteração de condições, estamos combatendo a Morte. Jamais. Tanto quanto imbatível ela é incombatível. Prova: só ampliamos vida que existe. Em seu lugar, não temos o poder de colocar mais nada porque na medida em que ela se retrai, diminui e bate em retirada, cada milímetro é conquistado implacavelmente pela Morte Triunfante. É inútil pensar o contrário.”
O fatalismo biológico vem de modo sutil, ou não, envelopado com matizes filosóficos. Ao ver do autor, momentos sublimes são no mesmo grau o nascimento e a morte, malgrado essa segunda e última etapa, um direito adquirido que não carece de ditame constitucional para vigorar, daí por que, senhoras e senhores juristas, ser mais poderoso e eficaz do que a coisa julgada e o ato jurídico perfeito. Num paradoxo e sem trocadilho, ele, o direito adquirido (à morte), sobreexistirá acompanhando o indivíduo, sob a perspectiva do espiritismo, no mínimo até a sua reencarnação.
“O que temos é de nos convencer que o homem, de tanto viver, que o doente, de tanto padecer – adquirem o direito à morte tão respeitável como o direito à vida por parte de quem nasceu. Por mim mesmo em me penetrava dessas verdades vendo o pátio dos milagres terrível de nossa enfermaria. Velhas megeras que a caquexia terminava de esculpir em forma de esqueletos revestidos de pelanca, corpos monstruosamente alterados pela infecção, pela maré montante dos edemas e dos derrames cavitários ou comidos em vida até sua última migalha pelo trabalho fabuloso dos cânceres. Admiráveis caras azuis de asfixias, gessadas das anemias, rubínicas, flavínicas e verdínicas das icterícias, grenais da hipertensão, balofas das anasarcas hidropesias; olhos incertos de urêmicos, porcelana das escleróticas dos verminóticos, pupilas incandescentes dos febricitantes, envesgamento dos meningíticos, comissuras sardônicas da boca dos tetânicos; peles áridas da subida das febres, molhadas das crises de devervescência… como vos conhecia e como eu pasmava da extrema complexidade de vossa fabricação (…). Aqui e além um resto beleza como o rastro da passagem dum Deus sugerindo que ali não estavam só doentes mas mulheres também.”
No próximo trecho que destaco, aflora pergunta que não quer calar: o que aconteceria com o Nava nos dias de hoje após tais observações? Seria cancelado por certa misogenia? Num rasgo freudiano, ele por acaso teria tachado a paciente de histérica? De ninfomaníaca?
“Lembro da feérica e maldita da cama ao fundo (primeira à direita de quem entrava) bela como as estátuas, cabeça divina, tronco divino, mas ah! figura dupla acabando, embaixo, no monstro pernibambo, pernas paralíticas atrofiadas pelo Heine-Medin. Lembro seus olhos imensos que pediam, na face perfeita, seu olhar fixo que perturbava os internos que iam examiná-lo e que mal se aproximavam de seu catre que ela deitava, abria a camisa despindo seios soberbos e empurrava o cós da saia fazendo aparecer o ventre de mármore e o princípio de uma linha negra – base do triângulo de pêlos cintilantes. Riscos de nanquim num fundo de alabastro. Ninguém podia examiná-la calmamente e senhor de si de tal maneira ela palpitava, estremecia toda, arfava, encarava e se roçava – a um tempo radiosa e abjeta, inquieta e inquietante, aflita e aflitiva (…). Logo a Irmã Salesia rastreou aquela coisa cheia de furor e sempre que a menina e moça ia ser visitada por médico ou interno ela, Irmã, tinha logo alguma coisa a fazer – injeção, curativo, vermina a combater, temperatura a tomar na doente do leito ao lado.”
E dou por encerrada esta postagem que já vai longa – não por óbvio em decorrência dos brutalistas e ao mesmo tempo afetuosos escritos do Pedro Nava. Como sempre, meus parágrafos lavrados a título de encadeamento restam com a única incumbência de permitir apresentar, aos(às) eventuais leitores(as) deste blog, a obra genial do memorialista em que procuro não arranhar a legislação dos direitos autorais. Dito isso, saliento e admiro o reconhecimento e a homenagem do memorialista aos(às) seus colegas do jaleco branco quando narra, nos idos de 1978 (ano no qual o livro saiu do prelo), as vicissitudes da vida profissional dos(as) colegas médicos e médicas basicamente durante a primeira metade do século XX.
“Meus sentidos em tensão permanente para surpreender a Moléstia desenvolviam-se sempre mais. Para olhar, vendo. Para escutar, ouvindo. Para tocar, adivinhando. Para servir a OBSERVAÇÃO até o nariz adquiria argúcias de faro. Já não falo do bafo de putrefação em vida que subia das miíases e gangrenas e nomas. Mas de pontas que saíam de dentro da morrinha geral da enfermaria: odor de violeta e vinagre dos diabéticos entrando em coma; de coalhada fecalóide dos tifentos; de alho, do reumatismo poliarticular agudo. Quantas vezes me destes um diagnóstico de imediato que só tornava o exame necessário para confirmar e ficar dentro da regra do jogo. A regra do jogo… era não perdê-lo e não se deixar enganar pela Moléstia que se escondia e desafiava. Olho atento, ouvido agudo, nariz perdigueiro, tato arrombador – eu ficava como que atuado naquelas horas de enfermaria com minha atenção afinada afiada ao fino fio dos violinos levados ao paroxismo. Eu me sentia como um bojo ressoante, uma caixa acústica, um aparelho de captação sensibilíssimo quando me media com a Doença hercúlea entaipada no corpo fraco dos doentes. E olhava bem em roda como quem quer tomar posse de terra desconhecida e sente-se cercado de embustes. Sentia agudamente as informações que me eram dadas. Pelos aparelhos de pressão cuja seta entrava de repente nas zonas de alarma onde começa o perigo das crises hipertensivas generalizadas e localizadas seguidas de seus sequazes, a morte súbita, o icto cerebral, o ângor péctoris, o edema agudo do pulmão. Acompanhava a coluna dos termômetros, sua entrada na zona vermelha – 37 – 38,5 – 40 – 41 – 42 e mais e as sereias de alerta contra o bombardeio incendiário. Os estetoscópios que canalizavam para meus ouvidos o ruído de seda do estertor crepitante, as flautas de sopro tubário, o jazz dos galopes – que soavam em mim feito o trovão. Eu sabia o que eles anunciavam. Ouvia e treinava em preparar a melhor cara do mundo para dizer à condenada: não é nada, minha filha, em dias você fica boa. Cada coisa era instrumento tocando sua partitura dentro daquele concerto de dores. Seringas, vidros de poção, caixa de cápsulas, camas – tudo me dava seu recado e novos olhos para minhas pobres doentes, para a paisagem da rua entrando pelas janelas da frente, a do pátio florido onde a caixa d’água preta parecia gigantesco monumento funerário…”
#Pedro Nava
#Beira-Mar, volume 4
#Luiz Carlos Azedo
18/08/2024
(370)
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