Memórias/Memorialistas (IV),

Retornemos ao Paulo Duarte.

Entre os seus oito livros de memória (já admiti não saber quantos foram exatamente), tem um com este título: “Apagada e vil mediocridade”.
O volume (quinto) poderia ter vindo a público somente assim, sem mais nada alinhavado, todas as páginas em branco. O ledor as percorreria por inércia, impulsionado por essas palavras da capa, consignadas há quase quarenta anos e tão atuais.

A mediocridade é penumbrosa, é desanimadora, campeia
por aí sedimentada por “doutrinadores”, “mestres”, “multiplicadores”
e também pelos que assumem com muita honra
ser indiferentes ao que existe nas bibliotecas, nos museus, nas galerias, nos centros artísticos, ao que acontece nos teatros.

Dito isso, abordemos “biografias”, “memórias” escritas por terceiros.
O debate sobre o tema, importante mas sacal (de quando é essa expressão?), atualizou-se a partir do momento em que cantores expressivos articularam preocupação com latentes
violações de privacidade e livres redesenhos da vida de cada um deles, numa contação de episódios sem compromissos com a realidade fática.

Nosso intelectual antecipou-se aos cantores e aos narradores de vidas alheias, profissionais (esses últimos) que, quando sérios, ocupam a meu ver papel relevantíssimo na cena cultural. Desassombrado, sem margem para a vilania (até por não poucos mea culpa espalhados pela obra), jogou quase toda a sua história para críticas gerais, para ataques
de partes adversas.

Ressalve-se, entretanto, que o fez devidamente municiado, numa época distante, muito distante dos computadores, dos registros eletrônicos. Ocasionais biógrafos do professor restam brindados com fartos elementos de pesquisa, o que, depois de posto, como que afasta
o contraditório, já pavimentado o caminho da verdade material.

Sai o blogueiro inzoneiro e assume o timão o comandante
que na singradura tem muito a dizer.

“Possuo um arquivo de mais de cem mil comprovantes, embora mutilado pelas invasões repetidas mais de uma vez do meu domicílio pela polícia e ainda de papéis desaparecidos pela vida nômade que me condenaram a cerca de dez anos de exílio
e alguns anos mais de prisões, somadas todas as que cumpri
umas às outras, isso sem contar fugas e coutos quando acossado pelos beleguins da política e das revoluções. Assim mesmo,
os milhares que me ficaram escapados dessas invasões
e sobressaltos são suficientes para validar qualquer prova civil, criminal ou histórica. Ainda que com os vazios de alguma prova testemunhal que já me vai faltando, pois testemunhas que podem falar, idôneas, corajosas, incorruptíveis, escasseiam cada vez mais, em maioria sempre cada vez mais se esquivam, já por comodismo, já por medo, já por mera covardia. De outro lado, outras mais infelizes ou talvez mais felizes, sonegadas pela morte, não mais podem afirmar ou informar fatos para os quais me faltam documentos escritos, sumidos pela forma descrita, muitos deles talvez, hoje, em poder de quem não tem interesse em exibi-los ou com interesse em sonegá-los. Sem contar episódios que, por sua própria natureza, só acontecem
sem testemunhas. Mas há o que ateste sua veracidade:
o meu passado veraz notoriamente comprovado de lutas
e renúncias, de coerência e tenacidade, transes ferozes
de violências grosseiras. Durante esses embates, fui levado
a fazer, oralmente e por escrito, acusações gravíssimas que,
se falsas, provocariam pelos menos desmentidos solenes ou, mais concretamente, processos dos quais eu saísse condenado. Tive-os, esses processos, numerosos, mas deles sempre voltei ileso e até purificado. Alguém levou-me a mim e a Julio de Mesquita Filho
a um júri popular, acusados de três crimes: injúria, difamação
e calúnia. Fomos absolvidos por unanimidade e saímos do tribunal, nós ambos, mais limpos ainda e a autoria do episódio mais maculada do que nunca, não por nós, mas pela sua vida pretérita entretecida de indignidades. Numerosos outros processos iniciados contra mim foram abandonados,
antes dos sumários de culpa.”

 

09 de novembro de 2013

(021)

mmsmarcos1953@hotmail.com

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