Memórias/Memorialistas (V)

Você vira pra cá, vira pra lá. Rodopia. Dobra as pernas, estica os braços, retesa todos os músculos sem noção de que podem vir câimbras ou estiramento. Nesse instante, começa a esquentar progressivamente
o local da cama onde você está deitado, sozinho ou não, difícil saber nessas circunstâncias o que é pior, e o travesseiro já está praticamente pegando fogo. De pouco adianta ventilador ou ar condicionado a toda. No Rio de Janeiro da minha infância até os quase dez anos de idade
e mesmo no meu retorno para a Cidade Maravilhosa aos quinze anos, tinha-se só o primeiro, o DC-3, o C-47, e olhe lá, Bangu calorão dos infernos. O jato turbinado era para poucos; ter ar refrigerado, gradil
que subia e descia direcionando o vento… só a elite (ela já havia;
ela sempre houve). Mesmo em Ipanema (Copacabana despenhava
e o Leblon, fora ainda da telinha da Globo), dava para contar nos dedos dos pés e das mãos o número de aparelhos pendurados nas janelas,
o preço era proibitivo.

http://www.deviantart.com/art/Insomnia-89504270 - by ashsivils
http://www.deviantart.com/art/Insomnia-89504270 – by ashsivils

Esse calor de abrasão vai ser deflagrado às duas, três horas da matina, quando a bruxa Alcéia ou a mais malvada sobrinha Meméia (todas duas com acento agudo no nome, uma banana para o acordo lingüístico,
com trema, revisor) dá início aos horrendos trabalhos de dominação
e passa a tomar conta (muita gente fala “tomar de conta”) de você
até o iniciozinho da manhã, passarinhada já cantando. A apavorante criatura domina-lhe o corpo e a mente à semelhança do que as entidades fazem com os cavalos no processo de incorporação – e quase nada restará da sua pessoa, da sua personalidade, da sua vontade. Malograrão portanto todas as suas tentativas de exercer livre-arbítrio, de relaxar,
de prometer sinceramente que, se o sono chegar, vai ser bonzinho com todo mundo e não invejará mais ninguém, nem seu vizinho que está namorando um mulherão.

Ao sair para o trabalho (muitos falam “serviço”), já no metrô, no trem, na bicicleta, na moto, no baú, no táxi, ou no helicóptero (essa patota sempre teve ar condicionado), você estará um bagaço, esfrangalhado, olhos vermelhos de pinguço, num mau-humor de assustar qualquer um. É, meu amigo, a insônia faz isso com a gente, ela é impiedosa, solerte, exclusivista, possessiva, não nos poupa em nada, suga nossas energias, oblitera nossos pensamentos. Só nos larga à luz do dia chamando carinhosamente o sono – quando não mais podemos desfrutá-lo.

Se duvidam disso, atentem para o que diz o inesquecível Pedro Nava,
no volume 3 de suas Memórias, Chão de Ferro, preservada a expressão em francês, a segunda língua da elite (ela de novo), não existia Miami
à época, a gente era mais ou menos feliz e sabia mais ou menos:

“(…) Além dos colegas dormindo, das avantesmas dos pesadelos – outra companhia começou a andar comigo no dormitório
da Primeira Divisão. (…) Je lui dis Madame! e curvo-me ao seu poderio. Seu nome é Insônia. Ela é rainha, imperatriz, papisajoana. Só os rudimentares podem considerar essa besta fera sem garras, toda teia de aranha, no seu sentido etmológico in, enna, non, carência, privação, falta de sono. Nada disto. Sono é um estado. Vigília, outro. Insônia, o terceiro. Não é não dormir, não! é um horror! outra coisa, uma brusca regressão
no tempo, queda nas indefesas de menino nos seus terrores, na presença dos gatunos debaixo das camas, dos assassinos atrás das portas e do Zorelha Gorda se materializando sem parar no lado do quarto para que nos viramos. O trem é diferente;
é uma solidão de chorar das solidões, uma tomadalmacorpo, um envultamento, uma prenhez gelada, um encosto, um abraço podre de Chicharro. É o que – se Mario de Andrade estivesse escrevendo isto – é o que chamar-se-ia o Bicho Insônia. Ele é ralo, ilógico, regressivo, catinguento, obssessivo que nem o Pesadelo. Isto! a insônia é um pesadelo acordado com lesmas e minhocas enconstando, subindo – onda a mando da danação.Vaderretravemariacheiadegraçossenhoréconvosco… Adianta não! Não há reza, esconjuro possível, exorcismo, nem Água Benta, nem Água de Lourdes, nem Água de Lagoa Santa. Vem um pinçamento no peito feito angina e a gente já sabe que não vai dormir. Vezes, tão exaustos, o sono quase molha, vai descendo em cachoeiras, mas evapora antes de bater no chão nosso do nosso corpo como aquelas chuvaradas do sertão descritas por Euclides da Cunha que não chegam à terra gretada bocaberta – repelidas pelo ar hálito em brasa… Antes, não! Hoje, eu tenho para essas covas, essas valas o recurso de fechá-las com carroças de diazepina, como caminhões de secobutabarbital. Se a insônia for, como suspeito. defesa do consciente contra o remorso-mor mostrado no pesadelo, fica tudo atendido. Sob o aterro do carus medicamentoso
os cadáveres não fedem. Nem sonhos há. Pedro, tu és pedra (…).”

 

17 de dezembro de 2013

(033)

mmsmarcos1953@hotmail.com

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