Tiradentes (IV)
Era normal que ela se apresentasse. Após eu ter acordado mais de uma vez, difícil seria retomar tranquilamente o sono na medida em que não se reingressa na atmosfera sem trancos e barrancos. O inacreditável é que, mesmo com a insônia olhando para mim, refestelada no mesmo travesseiro que o meu, deixando-me só a beiradinha, eu voltava a dar sinais de sonolência, as pálpebras recomeçavam a pesar, logo, logo estaria dormindo… dormindo. Eu merecia. Afinal de contas, eu me encontrava trabalhando, mas em gozo de férias. Quer dizer, eu estava em férias, mas trabalhando (obrigado, Domenico de Masi).
Esse barulho deveras me agitou e fez aflorar três episódios de medo que jaziam no recôndito da minha mente. O primeiro deles, quando, nos anos 60, íamos com alguma frequência a Ibicuí, belíssimo local de veraneio, distrito de Mangaratiba. Ficávamos, os bicões petizes, os membros do núcleo homeless da família, hospedados na casa dos avós do Claudio, meu primo. Nós dois, da mesma idade, ele inteligentíssimo, éramos próximos um do outro na infância mas a vida jogou um para cada lado: eu, para o Bacen, em Brasília; ele, para a Petrobras, no Rio de Janeiro, capital do estado onde situado o balneário acima referido.
Necessário atravessar a linha do trem para dar com os costados (sem trocadilho) no pedaço de praia em frente, “propriedade exclusiva nossa” já que não possuia nem trinta metros de testada e os vizinhos eram poucos (o iate clube ficava à esquerda de quem estivesse na areia olhando para o mar, em outro trecho, de acesso difícil pela mata e mais ainda pela água).
Àqueles meninos e meninas na faixa etária de nove a doze anos, interessava chegar jazinho ao pequeno paraíso marítimo – não sem antes da vivência do pânico, do masoquismo deliberado. Os adultos (eram loucos? irresponsáveis?) permitiam que aqueles capitães de areia (obrigado, Jorge Amado) pequenos burgueses descessem sozinhos a trilha (a casa ficava lá em cima do morrote) em direção à praia e se limitavam ao alerta: “Cuidado, muito cuidado ao atravessar a linha do trem.” Postávamo-nos no matagal à margem da ferrovia, distantes dois metros no máximo do trilho, e mantínhamo-nos naquela fascinante mas aterradora expectativa. Era a locomotiva apitar lá longe que os corações começavam a subir para a boca de cada um, respiração opressa. O estrondo ia num crescendo, ninguém do bando mimético de mistura com os insetos se mexia, trepidação crescente na bitola estreita, o comboio passava ensurdecedor, terrificante, e as meninas e os meninos assomavam, semblantes de alívio.
Vamos à la playa.
02 de maio de 2014
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