
Trapos de língua 2
Pouco importa o meio, a palavra bem escolhida abraça, cativa, envolve, marca a vida da gente.
– Jairo Marques –
Em 17/04/2024, soltei postagem (368) intitulada “Trapos de língua”, na qual eu aludia a certos vocábulos que, usados uma vez, ecoavam em todos os lugares, pandemicamente. Artigos, crônicas, matérias jornalísticas, palestras, rodas de conversa, podcasts, programas esportivos que deixassem de os propagar padeciam, caducavam, eram cancelados (já comecei com a neura) liminarmente, mais rápidos que os despachos do Xandão.
Tenho para mim (expressão também muito usada pelos pseudos; o Pondé debocha e os rotula de inteligentinhos) que a coisa começou entre algumas outras com “narrativa”, passou por “disruptiva, triscou em “camada” e voga com “taxação”, a qual remete a fisionomia alaranjada.
Não era meu intuito lavrar postagem de continuação. Se no primeiro apanhado se fazia uma salada desses termos pernósticos espalhados na linguagem generalizada, neste de agora, portanto o segundo, o mergulho se dará no mar dos jargões. Não os do Direito – aliás, troquei muitas aulas tediosas na UnB, dadas por professores de terninho ou de virtual toga, por literatura na veia – memorialística, ficção, humor. Senhoras e senhores, ou melhor, doutoras e doutores, nada de propedêutica, exegese, hermenêutica, interpretação teleológica.
Em manobra arriscada, vou me imiscuir no sofrido terreno da cultura, sempre parco de recursos financeiros, mas afortunado, sem ironias, no retroalimentar os termos que grassam no próprio segmento, alguns dos quais restaram exportados para outros ramos com efetividade e sem tarifaço.

ACESSIBILIDADE - Ainda falta muito para atingirmos o ideal, porém é inegável que se lograram melhorias em prol dos PCDs. A própria sigla deu identidade e certo empoderamento às pessoas com deficiência e facilitou concentrar esforços em todas as frentes, sobretudo as de cunho financeiro, para lhes diminuir (ainda não é possível eliminar) os obstáculos do cotidiano sempre difícil. Hoje, a turma da produção artística não tem dúvida alguma de que qualquer evento, bancado pelos cofres públicos ou pela iniciativa privada, somente se viabiliza se tiver de forma expressa tópico acerca de PCD.
APOIO - Patrocínio envergonhado, por isso nunca ostensivo e sempre de pequena monta. Pode ser um imóvel emprestado para filmagens de cenas, mostra de quadros, feira de livros, ou um carro antigo para gravar propaganda situada em época clássica e remota.
BENEFÍCIO - Da época dos milicos, era concedido na área tributária. O empresário dava uma mordida no orçamento (tecnicamente, certas emendas parlamentares de hoje) para montar por exemplo uma indústria em determinada região desassistida. Às vezes, até dava certo. O problema é que o dono do empreendimento, mesmo exitoso, relutava em abrir mão do subsídio.
CHAMADO - Não é chamada, a ficha que professores e professoras providenciavam e providenciam em todas as aulas nem o que os pais dão quando os filhos e filhas fazem besteiras. O chamado ocorre quando se convocam artistas para mobilização em favor de uma causa de interesse da classe. Nem sempre vai gente.
COLETIVO - No primário – ensino fundamental -, aprendíamos: coletivo significa que, mesmo no singular, representa um conjunto ou grupo de seres, objetos ou coisas da mesma espécie. Em se tratando de coletivo de artistas, avulta a heterogeneidade e não é em todos os casos que reina a harmonia e o propósito comum. Não é absurdo afirmar que rola dissidência aqui e ali, entrechoque de egos. Singularidade.
CONVOCATÓRIA - Vide “Chamado”
DEVOLUTIVA - Em português, é feedback. Parece que há um dispositivo constitucional estabelecendo obrigatoriedade de o vocábulo figurar em todo e qualquer projeto cultural.
ESCUTA AFETIVA - Não sei exatamente o que significa, mas considero as situações em que, transida pela paixão e alumbramento, a plateia inteira não dá um pio enquanto o indivíduo no palco não termina sua função.
ESCUTA ATIVA - Não é escutar e jamais fazer cara de paisagem à lá FHC ou Dulcina de Moraes (ao término da performance, a fantástica atriz dizia para o ansioso artista: “Não tenho palavras.”). Sendo didático, trata-se de ouvir da poltrona gargarejo do teatro a atração artística desempenhando e em seguida subir ao palco e ouvi-la de pertinho, tal qual tiete, e num surto arrancar-lhe o microfone e roubar a cena.
ESPAÇO ARTÍSTICO - Vide Espaço Cultural.
ESPAÇO CULTURAL - Vide Espaço Artístico.
ESTÍMULO - Assistir a um “pas de deux”. A propósito, aprendi somente agora o que é adágio e coda. Ainda a propósito: conheço duas belas bailarinas que são psicólogas; ou seria, duas belas psicólogas que são bailarinas? O nome das duas profissionais sérias e competentes não conto nem se me plantarem uma tornozeleira. Me restrinjo às iniciais. A de uma é “A” e a da outra é “P.” Não. Trarei um pouco do sobrenome e fica assim: A F e P M. Garçom, mais uma dose para refletir na taça a segunda letra: AD FI e PA ME. A saideira, a que acaba com o suspense: Adriana e Paula.
EXPERENCIAR - Mesmo sendo de uma certa idade (como dói), até hoje não consegui experenciar.
FOMENTO - É quando, eba, ufa, oba, enfim, sai alguma verba, editalícia ou não, que no desenrolar do termo de fomento (colaboração, parceria) vai matar a fome de trabalho do(a) artista.
INTERATIVO(A) - Por que presentemente toda iniciativa artística ou cultural tem que ter interatividade? Comigo, não, violão. Me limito a experenciar Escuta Passiva
MAPEAMENTO - Cadastramento (de pessoas físicas, jurídicas, de locais). Parece que há um dispositivo constitucional estabelecendo obrigatoriedade de o vocábulo figurar em todo e qualquer projeto cultural.
MENTORIA - Recomendações para melhorar pessoal e profissionalmente. Parece que há um dispositivo constitucional estabelecendo obrigatoriedade de o vocábulo figurar em todo e qualquer projeto cultural.
MERDA - É gratificante ver crianças da colônia de férias ou dos cursos de iniciação cênica do Mapati, faixa de 8 a 12 anos, se abraçarem e desejarem umas às outras Merda em uníssono antes da apresentação. Dá para imaginar que elas estão prestes a ganhar o Tony ou o Oscar.
MOINHO - Parece que há um dispositivo constitucional estabelecendo obrigatoriedade de o vocábulo figurar em todo e qualquer casa cultural. Prefiro o Cartola com o “O mundo é um moinho”.
OFICINA - Antes do Zé Celso Martinez, oficina era de carros. Depois dele e de mais ninguém, o termo foi apropriado pelo teatro e não se fala mais nisso.
PATROCÍNIO - Apoio corajoso e ostensivo.
PERIFERIA - Uma pausa. Sou um punk da periferia, sou da Freguesia do Ó. Minha solidariedade ao Gilberto Gil, que perdeu um filho e uma filha. Eu perdi um filho há muitos anos. Não é apenas um retrato na parede. Perda, saudade.
QUITANDA - Sou do tempo em que quitanda era estabelecimento que vendia gêneros alimentícios e muitos cacarecos. Parece que há um dispositivo constitucional estabelecendo obrigatoriedade de o vocábulo nominar toda e qualquer casa de cultura. Vide Moinho.
SABERES - Só sei que nada sei.
SENSORIAL - Sem ser machista e com uma inveja de gênero: a mulher tem sexto sentido.
TRANSVERSATILIDADE - Cultura em conjunto com outras. Na medicina seria uma especialidade imbricada com outra no atendimento harmônico e de mais abrangência ao(à) paciente. Na arte, música junto com literatura e por aí vai. Igualmente, é figurinha carimbada no bojo dos projetos culturais.
VIVÊNCIA - Vide Experenciar.
YAKALAKAYA - Espetáculo que carrega alguns dos termos acima e foi noticiado no jornal Folha do Guará. Experiência singular, o público reconecta-se com suas raízes por meio da arte. A vivência propõe imersão profunda nas relações entre voz, instrumento e movimento, entrelaçando corpo e ancestralidade em um fluxo orgânico e sensorial. Inspirado nas tradições angolanas de lutas e danças, o trabalho se apoia em ritmos circulares e cadências que ressoam com a natureza e a própria fisicalidade humana. Entenderam?
YÔGA - Yoga
ZÊ - Zé-fi-ni
27/08/2025
(381)
mmsmarcos1953@hotmail.com
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