Trapos de língua
O tempo não faz algo apenas com a memória – a memória também faz algo com o tempo.Douwe Draaisma (apud coluna Visto, lido e ouvido do Correio Braziliense)
É muita presunção querer dar aqui uma de Sergio Rodrigues, jornalista que, não fosse suficiente haver escrito O Drible, um dos melhores livros sobre futebol, nos brindou com outra publicação especial, Viva a Língua Brasileira. Uma vez por semana, desfia na Folha colunas sobre Português como se nosso vernáculo fosse coisa facílima, brincadeira de criança (saudades da Dad Squarisi).
Numa das últimas delas, como que desancou o atravessar. Não o atravessar a rua, que nós, de Brasília, o fazemos na idosa (27 aninhos) faixa de pedestres. Para o escritor, o vocábulo agora atravessa outros significados, “A explosão de novos usos de atravessar passa longe da simplicidade. Trata-se mesmo do contrário, de um modismo ornamental.” Dito isso, Sergio Rodrigues (não registro apenas “Rodrigues”; repito o prenome igualmente. E daí?) alerta de outra parte que “É importante evitar o erro literalista das patrulhas. O uso metafórico de atravessar, atravessado(a) e atravessamento não tem nada de ‘errado’ em si. É provável que deva seu imenso sucesso ao fato de ter soado esperto na fala e no texto dos primeiros que ali chegaram, capaz de dar um verniz poético a certas formulações. Mas pontua (argh!): “No entanto, como se trata de um caso claro de inflação vocabular, hoje os sentidos são tantos que todos acabam por se desvalorizar, virando uma pasta.”
Com minha língua de trapo (saudades do programa de TV Família Trapo), ouso nas linhas abaixo enjoar todo mundo trazendo algumas palavras, em sua maioria pescadas na imprensa atual com seus antigos/novos significados, sendo de anotar que meu time de coração aparece na listagem por ser meu time de coração.
Aonde – é um tal de aonde pra cá, aonde pra lá. “Pretendo continuar com as cirurgias estéticas, aonde farei mais feliz minha clientela.” Vocês querem continuar? Então, vamos.“Com mais alguns cursos de especialização, concluo minha formação acadêmica, aonde serei contratado para um excelente emprego.” Onde se vê “aonde” é horror mesmo.
Ascese – segundo a Web, trata-se de prática que visa ao desenvolvimento espiritual, levando-se vida contemplativa. Quem pratica a ascese é pessoa de sã moral e vida irrepreensível. Além do Mujica, vocês conhecem alguém assim?
Assombrar – essa veio de com força. A partir de não sei quando, ninguém mais tem medo ou fica assustado, todos e todas (e todes) ficam assombrados(as). Um assombro.
Boa noite, família – Em viagem no ano passado ao Rio Grande do Norte, eu andava todas as noites com minha mulher e com irmã minha e seu marido pela feirinha de Pipa encafifado (essa é nova) com os/as dezenas e dezenas de agentes de turismo à frente dos restaurantes concitando (essa vai pegar) a “Família” a adentrar o recinto e se fartar com a culinária variada do balneário. Meu desconforto se adensava porquanto Pipa, em vez de papagaios que atravessam (juro, a palavra saiu naturalmente) o céu, remete a pipeta, o terror dos laboratórios nas minhas aulas de Química.
Boleiro – vide “Parça”
Calcificação – belo dia, notório cientista político usou esse termo (lulistas de um lado e bolsonaristas do outro, nada vai mudar). Pronto (saudades da linguagem dos cearenses, não a daquele senador Paraguaçu), não se fala de outra coisa, a palavra restou agarrada a quem se arvora pelo campo da análise política e não desgrudou mais.
Clivagem – nos primórdios a palavra (prima distante da que consignada imediatamente acima) era empregada apenas pela turma da sociologia. Crescentemente, foi ganhando um monte de pais e mães e até entrou nas discussões em boteco raiz.
Corte epistemológico – de novo, a Web: mudança radical de paradigma. Uma mudança de métodos, conceitos, teorias e princípios. A epistemologia tem afinidade com a filosofia – instrumento dos sábios na arte do pensar. A expressão conceitual estertora há décadas, mas de vez em quando pessoas desapercebidas a revivificam e logo em seguida recomeça o vocábulo a perder força, se recuperando lentamente até a próxima citação desavisada.
Costumo dizer que – a Tati Bernardi, menina tolerante e compreensiva (o elogio mostra que ela me assombra, opa), fulmina quem se vale da expressão, geralmente paulistanos machistas e autocentrados que usam pulôver pendurado no pescoço). Pensando bem, é arrogante empregar o “Costumo”. Por acaso o cara ou a cara é conferencista, que vive dando palestra pelo universo a dizer “Costumo dizer” para a plateia embasbacada e em delírios?
Curatela – evoca meu remotíssimo tempo do Direito na UnB, a braços com a obra prima da literatura jurídica que era o Código Civil de 1916, interpretado artigo por artigo e magistralmente pelo ex-ministro do STF e meu professor Moreira Alves. Hoje, ela vem à cena para referir pessoas que cuidam de incapazes e hipossuficientes, responsabilidade que se agrava diante de heranças em disputa.
Decolonial – ensinam que é uma contraposição à colonialidade, processo histórico de ascensão dos estados-nação depois do término das administrações coloniais. No Brasil, isso foi, e de certa forma ainda o é, uma grande festa sem povão.
Deixo esse legado – este blog será herdado por minhas filhas, que felizmente não sabem disso ainda.
Disruptiva – palavrinha, ou palavrão, que está no auge, não passa um dia sem que comentaristas não a usem. Aliás, em um dia, a palavra chove mais do que o previsto para os trinta dias subsequentes. Significa que pode romper o seguimento normal de um processo.
Empírico – volta a UnB a me assombrar. Somente quem fez Iniciação à Metodologia Científica pode avaliar o quadro. A matéria derrubava metade da turma. A virtude estava em que, passando em IMC, os(as) calouros(as) poderiam sentir-se formados, canudo na mão, tudo pela frente passava a ser refresco, mesmo para quem fosse cursar as disciplinas da Engenharia Elétrica (exagerei?). A lição da Wikipédia: Na filosofia, o empirismo é uma teoria do conhecimento que afirma que o conhecimento sobre o mundo vem apenas da experiência sensorial; é a experiência do real. Por sua vez, o método indutivo afirma que a Ciência como conhecimento somente pode ser derivada a partir dos dados da experiência.
Escalar – mais Ibope do que covid (alguém lembra?) e dengue. Dias desses, respeitado e simpático jornalista brasileiro, cabelos sempre desgrenhados, uma espécie de Milei do bem, com expertise em assuntos internacionais, usou a palavra por cinco vezes em sua prestigiosa coluna. Sou do tempo em que “escalar” era escalar o time que iria jogar (nas peladas, a briga já começava ali, todo mundo queria no seu time os craques e ninguém gostava de ser escalado no gol). Usado também por quem sobe as montanhas, maiormente o Everest. Nos últimos tempos, virou termo adotado em escritos sobre guerra, por isso vai longe.
Histeria – o chilique avant la lettre (os franceses ainda a usam?). Aplicável às mulheres, daí por que diagnóstico em essência machista. Vide Costumo dizer que.
Incumbente – palavra que de vez em quando saí por aí, uma delícia para articulistas incrementarem suas colunas. Na minha época, minha mãe me incumbia de lavar a louça e às vezes o banheiro. Hoje, leio que a palavra denomina a vantagem que os políticos em exercício do cargo (os incumbentes) obtêm ao tentarem se reeleger.
Inserida no contexto – putz, é O Pasquim na veia. Não consigo agora me inserir no contexto. Sou um alienado.
Jogador de contenção – Esquecendo o Titês, para mim seria o bequezão de várzea, o Felipão quando maltratava a bola nos campos do sul do país.
Letramento – à busca da medalha de ouro, a de prata ela já conquistou. É daquelas que faça chuva, faça sol aparece em milhões de artigos de imprensa. Mas não tenho a definição pois sou um analfabeto funcional e não saio do meu cafofo para interagir socialmente me valendo da palavra em tela.
Narrativa – veio à luz ninguém sabe exatamente em que data, mas venceu todos os obstáculos e está nestas plagas até hoje, linda e brejeira. O ápice é nas campanhas eleitorais, você pode atribui-la ao governo ou à oposição, que dá na mesma. Aliás, minha narrativa cada vez mais entedia.
Natureza exuberante – tendo assistido no canal fechado a milhares e milhares de programas sobre hotéis incríveis, verifiquei que todos sem exceção se estabeleceram cercados por exuberâncias. E todos esses hotéis (há pousadas também), invariavelmente, têm piscinas de borda infinita, contratam trabalhadores e trabalhadoras da região, comem os produtos ali mesmo plantados e erigem a sustentabilidade como dogma.
Necropsia – ainda o espectro da UnB. Disciplina Medicina Legal, minha turma no IML (faixa de 20 anos) para acompanhar um exame cadavérico. Era de um menino de seus nove anos. Até hoje, aquelas imagens não me saem da mente. Retornando ao foco (palavra chatinha) de nosso trabalho: entrei naquela repartição pública necessária mas horrenda falando autópsia e saí falando necropsia consoante o Letramento (oxe!) do adorado professor Hermes. Dizia ele que autópsia não existia pois ninguém pode fazer esse tipo de autoexame, no que os dicionários preguiçosos dos dias de hoje não podem lhe tirar a razão.
Neologismo – Se Pedro Nava, o maior memorialista deste país, foi quem criou determinada palavra, ela se viu automaticamente consagrada pelo uso de uma pessoa que vale por mil.
Parça – Endrick, cuidado com a turma em volta. O último que vivia protegido por esses indivíduos porta-joias cafonas terminou, quem diria, nas Arábias, muita grana mas numa solidão que nem te conto.
Pet – Minha segunda filha é veterinária, o que não me impede de considerar que estão exagerando um pouco com a bicharada, paparicos antinaturais
Piscina de borda infinita – Vide Natureza exuberante.
Ponto futuro – é o pretérito perfeito. Estão ressuscitando o ponto futuro, genial e precisa denominação criada pelo civil (esqueço que ele foi capitão) Claudio Coutinho sucumbido nas águas das ilhas Cagarras. O técnico do time para o jogador sob seu (dele) comando: Você se prepare para correr lá na frente, mesmo não vendo a bola ainda, porque ela vai ser jogada lá antes sequer de você partir e os defensores, no contrapé, pregados no chão, quer dizer no gramado, se perguntando como e para quem aquela bola doida foi passada. Companheiro do cracaço Tostão no time do Cruzeiro, Dirceu Lopes, a quilômetros dessa zona do campo vazia e despercebida, lançava para ele mesmo naquele local insuspeitado e pegava a redonda para jogada sempre fantástica, enquanto que os beques (zagueiros) conseguiam apenas mover a cabeça para contemplar a intuição do gênio.
Pontuar – quem pontua não pontifica nem conta pontos. Fica inserido no contexto do ponto de ônibus, Esperando Godot.
Tutor – quando eu era criança pequena lá em Barbacena, me diziam na Escolinha que tutor era quem tinha a função de cuidar e se responsabilizar por gente. Bicho tinha dono ou dona (méritos para supermercado de Brasília, que, um pouco tardiamente, trocou seu nome, “Dona de Casa”, para “Dona” apenas. Feminismo se fortalecendo).
Vasco da Gama – (Vide Vinicius Júnior).
Vinicius Júnior – ex-integrante do principal time adversário do glorioso Vascão, clube pioneiro na luta centenária contra o racismo. Vascaíno, dou meu viva ao Vini Jr e a sua reação contra o preconceito.
Última – alívio, acabou.
#Douwe Draaisma
#Sergio Rodrigues
#Viva a Língua Brasileira
#Dad Squarisi
21/04/2024
(368)
mmsmarcos1953@hotmail.com
Um comentário
Raul Curro
Caríssimo amigo e prediletíssimo ex-colega do ínclito CRSFN de antanho,
Adorei sua ínclita e instigante resenha cultural!
Eu, como português, como um dos”donos” da língua lusitana, muito similar ao catalão, sinto-me inconformado pelo incompreensível fato de Portugal e outros países decloniais, terem assinado, mas não ratificado, o Acordo de Uniformização da grafia do nosso vernáculo, proposto pelo Brasil, dada a existência de muitas palavras, com significado igual e escrita diferente no Português de Portugal e do Brasil .
E tememore-se que este Acordo, apesar de ter sido prorrogado uma vez, ainda não foi ratificado por, a meu sentir, devido à teimosia e ignorância de meus patrícios.
A suposta alegação, por parte da imprensa portuguesa, para que a assembleia portuguesa e, por tabela, as assembleias dos demais países decloniais, que adotam a língua portuguesa portuguesa, deixem de ratificar, sem o que o Acordo não entra em vigor, seria o fato de que os criadores do idioma não aceitavam se submeter, no tocante a essas palavras, à grafia adotada, no Brasil, que acabou prevalecendo nesse Acordo.
Aliás, eu, como português, sou, cem por cento, a favor da ratificação desse Acordo, que, até o momento, só o Brasil o fez.
O meu fundamento é que o Português escrito e falado, no Brasil, constitui uma evolução, para melhor, tanto na escrita como no falar. Ademais, é fato incontestável que o Português de Portugal e dos demais países decloniais é utilizado somente por cerca de 50 milhões de seres humanos, enquanto que, no Brasil, são mais de 200 milhões.
Pretendo, um dia, ir a Portugal e tentar, no limite, convencer aqueles meus patrícios a ratificaram o Acordo. E, dessa forma, creio que a ONU incluiria o Português no rol de línguas oficiais adotadas.
Um grande e forte abraço virtual, por ora, extensivo a quem mais desejar, especialmente aos nossos amigos e ex-colegas do então CRSFN,
Raul Curro
P.S.: Por favor, perdoe-me pelos meus eventuais erros de grafia. Minhas vistas andam falhando muito e minhas habilidades de revisão de textos estão se diluindo…