Memórias/Memorialistas (II),

Falávamos do Paulo Duarte. A abertura de suas “Memórias”
vem com esta epígrafe: “Razões de defesa por ter vivido…” Poderíamos parar por aqui, nada mais precisaria ser dito a respeito do antropólogo.
Aliás, um homem que politicamente seria hoje tido por extremamente conservador, chegadíssimo que era aos Mesquita do Estadão.
O problema da nossa esquerda (a festiva, a soturna, a revolucionária,
a ex-revolucionária, a reformista) é que de ordinário ela não lê
o que a direita escreve. A meu ver, deveria fazê-lo pois a turma
de lá escreve bem paca, até por dispor ao longo da vida
de mais tempo para ler.

Vou transcrever sob a forma de picles (saudades do Pasquim;
olha a idade desvelada de novo), não linearmente. Hora de abeberar.

“(…) depois de cinquenta e tantos anos de refregas,
de borrascas, de embargos e agravos
(epa, isso voltou à moda),
é que tenho de me defender por ter vivido, ao contrário daqueles que, pela complacência, pela malícia ou pela covardia,
disso podem esquivar-se. Uma prestação de contas minuciosa, capaz de me deixar tranquilo comigo mesmo. (…) Ofereço-a
a esta terra que, com frequência, chegou a tratar-me com mais aspereza do que as terras do exílio que conheci. Terra que amo, que não me compreendeu. E o faço sem ressentimentos, porque quem raciocina e sente, sublima-se sempre. Ou será que eu quem não a tenha compreendido?…”

E o pensador prossegue no seu arrazoado com poética virulência, deixando-nos sem possibilidades de fugir da linha da retidão:

“(…) muito cedo descobri que, para a gente fazer uma carreira triunfal, na política e na fortuna principalmente, pelo menos
em nosso país, é preciso praticar antes uma porção
de porcarias. E eu sonhei e lutei sempre por ser um sujeito asseado. Talvez não o tivesse conseguido de todo, mas a culpa não foi minha, deve-se à fatalidade humana. O culto
da submissão, do aplauso incondicional, da bajulação
e da subserviência, em tempo algum foi meu divertimento.
Para mim, a amizade não se consolida com o agradinho
do servilismo, como tantos pensam e praticam. As minhas amizades firmes, poucas que são elas, eu as consolidei mais divergindo do que concordando…’

Fecho, por ora (não se abandona Paulo Duarte assim, sem mais
nem menos), o afloramento dessas lições invocando esta passagem
para nosso deleite mas principalmente para certo desconforto
quando eventualmente nos certificamos de que temos lá
nosso pedaço de carapuça:

“(…) Natural que, numa vida mais ou menos longa, tenha cometido injustiças, condição humana que não excetua ninguém. Mas todas as vezes em que me veio consciência disso procurei repará-las, pois a soberba ou o chamado respeito humano
não me intimidam nem está na ementa das numerosas fraquezas
que o destino me preparou com cuidado de grande cozinheiro.
O falso orgulho da retratação jamais me deixou humilhado.
Fui violento muitas vezes até implacável.
Cheguei ao ponto de cometer a crueldade de, conscientemente, quase destruir dois sub-homens. Hoje não o faria depois
de fanatizado pelo dogma da preservação da dignidade humana que, até num parricida, precisa de ser respeitado. (…) pois eu tentei destruí-los e só não os massacrei porque o meio
em que ambos vivíamos, definhado do decoro, puído da sanção social, não mo permitiu, o que julgo hoje uma sorte minha
de não poder levar a cabo o meu impulso de ir até o fim da ação (…). A decadência moral e política deste nosso país, tão propícia
aos corruptos, me salvou desse pecado. É verdade
que um não alcançou o seu objetivo maior, mas prosseguiu
uma carreira vitoriosa dentro do peculato e da malversação. Ademais tantos foram os prevaricadores que se revelaram depois, que haver concentrado tanto esforço para punir
um só deles fora uma injustiça feita aos demais.”

 

3 de outubro de 2013

(010)

mmsmarcos1953@hotmail.com

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