Memórias/Memorialistas LXXVII

Qualquer pessoa que tenha vivido parte da sua vida sob um regime autoritário reconhece a elementar justiça de tal tese: democracias autênticas tendem a puxar pelo melhor de nós; regimes autoritários, pelo contrário, apostam na cultura do ódio, deformando e corrompendo os seus cidadãos, e transformando muitos deles em delatores e assassinos.
– José Eduardo Agualusa –

De enaltecer as feiras literárias que se espalham pelo Brasil cada vez com mais frequência, a rigor verdadeiros parques de diversões para escritores e escritoras, elas agora representadas em números expressivos, a espancar (o termo não é feliz) o machismo que grassa neste país de litoral e interiores os mais amplos.

Evidentemente, não fui a todos esses eventos – haja tempo, no que sou rico; mas haja também dinheiro, aí sou pobre, desprovido sequer de um saquinho de moedas apanhado na piscina do Tio Patinhas. Nas programadas sessões de autógrafos, a gente pode exercer a mais lídima tietagem. De outro lado, mesmo em feiras de grande porte que ocupam em sequência pavilhões e pavilhões, sobreexistem dificuldades para encontrar conjunto de obras literárias, mesmo as de autoria de escritores(as) consagrados(as) e bons de venda.

Por exemplo, achar livros do nosso Erico Veríssimo nessas mostras, bem assim nas redes de livraria e nas livrarias de rua – tem se revelado jornada épica.

Fosse um escritor nos dias de hoje, o gaúcho ilustre, ainda que massacrado pela célebre timidez, enfrentaria esses festivais com um pé às costas. Porque de mistura com o ofício das letras, o pai do Luiz Fernando Veríssimo (será que ele melhorou de saúde?) se apresenta fascinado por viagens consoante relata em Solo de Clarineta 2, objeto dessas últimas postagens.

“(…) Estas memórias ficariam injustificadamente incompletas se nelas eu não narrasse, ainda que de modo breve, as andanças em que me tenho largado pelo mundo na companhia de minha mulher e de meus fantasmas particulares. Desde criança fui possuído pelo demônio das viagens. Essa encantada curiosidade de conhecer alheias terras e povos visitou-me repetidamente a mocidade e a idade madura. Mesmo agora, quando já diviso a brumosa porta da casa dos setenta, um convite à viagem tem ainda o poder de incendiar-me a fantasia.

Erico Veríssimo aos 15 anos

“(…) Na minha opinião, existem duas categorias principais de viajantes: os que viajam para fugir e os que viajam para buscar. Considero-me membro deste último grupo, embora em 1943, como já contei no primeiro tomo destas memórias, nauseado pelo ranço fascista de nosso Estado Novo, eu tenha fugido com toda a família do Brasil para os Estados Unidos, onde permanecemos por dois anos. Devo entretanto esclarecer que, mesmo durante esse tempo de fugitivo, jamais deixei de ser um buscador.”

O memorialista dá um corte, digressiona e, ao comentar emprego duma expressão popular havia décadas, faz-nos ver que o mundo é vasto mundo porquanto nele não existem fronteiras, demarcações, limites, marcos geográficos.

“(…) Usei como título deste capítulo dedicado a minhas viagens uma expressão popular que suponho de origem gauchesca. Tenho-a ouvido desde menino. Da boca de velhos parentes e amigos, de tropeiros, peões de estância, índios vagos, gente da rua… Minha própria mãe empregava-a com freqüência e costumava pontuá-la com um fundo suspiro de queixa. As pessoas em geral pareciam usar essa frase para descrever um mundo que se lhes afigurava não só incomensurável como também misterioso, absurdo, sem pé nem cabeça… Desconfio, entretanto, que na sua origem essa exclamação manifestava apenas a certeza popular de que Deus fizera o mundo sem nenhuma porteira a fim de que nele não houvesse divisões e diferenças entre países e povos – gente rica e gente pobre, fartos e famintos, uns com terra demais, outros sem terra nenhuma. Em suma, o que o Velho queria mesmo era um mundo que fosse de todo mundo. É neste sentido positivo que desejo seja interpretada a frase que encabeça esta divisão do presente volume.

“(…) Quem me lê poderá objetar que basta a gente passar os olhos pelo jornal desta manhã para verificar que o mundo nunca teve tantas e tão dramáticas porteiras como em nossos dias… As próprias páginas deste livro bem poderiam ser uma confirmação desta idéia. Mas que importa? Um dia as porteiras hão de cair, ou alguém as derrubará. ‘Para erguer outras ainda mais terríveis’ – replicará o leitor cético. Ora, amigo, precisamos ter na vida um mínimo de otimismo e esperança para poder ir até o fim da picada. Você não concorda? Oh, mundo velho sem porteira!”

         Tal perspectiva de imensidão, de magnitude nos joga numa região que, por mal ou por bem, está na moda. Um dos causos narrados pelo Erico em viagem não oficial pela Terrinha Portuguesa metaforicamente aponta desabafo de escritor português que viveu no Brasil, na Amazônia.

“(…) Aos poucos, explorando a floresta, parando aqui e ali ao pé duma árvore, vou encontrando escritores portugueses que conheço de leitura e retrato. De repente exclamo com genuína satisfação: ‘Ferreira de Castro!’ E ele, sorridente, de braços abertos: ‘V’ríssimo!’ É um encontro que há muito tenho desejado. Moreno, estatura meã, robusto, à primeira vista este beirão do litoral dá uma impressão de sisudez e incomunicabilidade. Sei que passou sua adolescência de homem pobre na Amazônia, e dessa experiência resultou um livro, A Selva (1930), que é talvez o melhor romance que se escreveu até hoje sobre aquela região brasileira. Trata não só das agruras da selva como também da exploração de que eram vítimas os trabalhadores brasileiros dos seringais. Seu romance Emigrantes, publicado em 1928, mostra as dificuldades e humilhações dos portugueses pobres que emigravam para o Brasil. Ferreira de Castro me pergunta agora se é verdade que esses dois livros o tornaram malvisto e malquerido no meu país. ‘Ó homem – respondo – ‘acho que é puro boato. Afinal de contas você nada mais fez que escrever a verdade. E como escreveu bem!’ Este bravo romancista, que tanta intimidade tem com a vida, a dura vida dos desprotegidos, é considerado o precursor do romance neo-realista em Portugal. Por alguns instantes conversamos sobre um escritor que ambos admiramos e queremos: Jorge Amado.”

Já imaginaram se o escritor luso fosse um indigenista acompanhado de um jornalista britânico?

E nessa estada portuguesa, idos de 1959, semanas e semanas rodando o país que é a entrada da Europa (há controvérsias, levantadas até pelos portugueses mais irônicos), o Erico Veríssimo vai participar de inúmeros seminários, simpósios, encontros literários, convenções, feiras de livros (olhem elas aí), arrasando como se diz atualmente. O criador de O Tempo é o Vento era um indivíduo de centro (hoje, no espectro político, não poderia entretanto ser rotulado de integrante da terceira via), inimigo das ditaduras de direita e de esquerda, mas que salientava sua repulsa pelo salazarismo (nos meus tempos de graduando de Direito na UnB, início dos anos de 1970, tive o desprazer de ter no corpo docente do então departamento, ainda não faculdade, o Marcelo Caetano, ex-primeiro-ministro de Portugal e um dos próceres da ditadura longamente vigorante no país do meu Vascão da Gama.

“(…) Dias mais tarde recebi do Brasil, da parte de Mauricio Rosenblatt, um bilhete acompanhado dum recorte do Correio do Povo de Porto Alegre, contendo uma curta notícia distribuída pela United Press Internacional e na qual se informava que o ‘romancista brasileiro’ se encontrava em Lisboa como hóspede oficial do Governo português. Essa inverdade me deixou irritado. Não sou homem de grandes explosões, mas de pequenas implosões. Telefonei imediatamente para a agência local da U.P.I., pedi à operadora que chamasse seu gerente. Quando o tive na outra extremidade da linha e ouvi o seu ‘Está lá?’, identifiquei-me, minuciosamente, li em voz alta e tão clara quanto possível, a notícia do recorte, e acrescentei: ‘Exijo que essa agência desminta o mais cedo possível este comunicado. Não é verdade que eu esteja em Portugal como convidado do governo salazarista. Viajo por conta própria e neste país sou hóspede de meu editor Antonio de Souza Pinto. Jamais aceitei nem aceitarei qualquer favor dum governo totalitário’. Meu invisível interlocutor murmurou apenas: ‘Pois pois…’ Desliguei o telefone. Como uma agência de notícias da estatura da United Press International não pode enganar-se e muito menos admitir publicamente que cometeu um erro de informação, a maneira que o citado agente encontrou para ‘restaurar a verdade’ foi a de, no próximo comunicado que expediu para o Brasil a meu respeito, anunciar que ‘o escritor, que se encontra na Europa em viagem particular de recreio, pronunciará hoje à noite uma conferência pública no Teatro D. Maria II…’”

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04/07/2022
(351)
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