Dr. Farani (II)
Meu pai nunca me bateu.
Filho de advogado que numa determinada fase da vida fora delegado de polícia e sobrinho, pelo lado materno, de Pedro Baptista Martins, um dos juristas autores do Código de Processo Civil de 1939 (nesse particular, orgulho meu, sim), o Lelio Martins de Souza desincumbiu-se na vida refratário ao castigo físico, não exatamente em respeito à Lei da Palmada, belo projeto materializado décadas depois e que terá sempre meus elogios os mais entusiasmados. A razão dele, o motivo preponderante para tal candura, bem outro, trauma de infância.

Pai do meu pai, Sebastião de Souza era um homem rígido na conservadora Carangola dos anos 1930. No retorno do trabalho, após ouvir, circunspecto, o relato fidedigno mas sofrido (mãe é mãe) da minha avó sobre as travessuras perpetradas durante o dia pelos quatro rebentos, esse meu avô cuidava de restabelecer a ordem, uma espécie de microcosmo do ambiente em nome da qual os brasileiros e brasileiras tanto padeceram nas ditaduras. Preservada a única filha – a caçula, ainda hoje conosco nos seus 86 anos bem vividos, nunca pecadora -, o puliça convocava os quatro filhos meliantes para subir ao banheiro do andar de cima do sobrado, o Doi-Codi doméstico e domesticador. Enfileirava-os, pelo critério de idade, do mais velho para o mais novo, e descia o relho neles, sobretudo no meu pai, o último do apavorado lote masculino, o gordote, por isso de apelido Bojudo, relembro aqui.
Já pertencente ao grupo da melhor idade, expressão por ele detestada, assim como qualquer coisa que evocasse velhice (inclusive, pilates e hidroginástica), meu pai nos contava, a mim e a meus irmãos e irmãs, reiteradamente, gostosamente, aliviadamente, que, na calada duma noite de ventos uivantes, Salvio, o salvador, o tio ocupante do segundo lugar daquela fila macabra e meu padrinho de batismo, saíra do calorzinho do cobertor e fora cair no rio, com a coragem que o medo das surras impunha, mergulhando até o fundão do rio, onde deixara para todo o sempre a temida, devastadora tala.

Necessário encurtar a história para transpor o mais breve possível o portal do clube então de elite, hoje em ruínas, de arte a descrever o enredo no qual iremos inserir o nosso médico do título.
16 de agosto de 2014
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