Memórias/ Memorialistas LXXX
A perda resgata os sujeitos que pairavam distantes do nosso dia a dia. Quando se dá a falta, eles se presentificam mais do que nunca, e suas lembranças vívidas absorvem nossa energia.
– Vera Iaconelli –
Dirijo minhas vistas para o horizonte e nada de notícias sobre o estado de saúde do Luiz Fernando Veríssimo. A caminho dos 87 anos, o escritor desaparecera da mídia, há tempos não chegam novas crônicas de par com filmagens, entrevistas, artigos; enfim, inéditas matérias jornalísticas a respeito dele. Fosse época da ditadura militar (já acabou, né?), pensaríamos que o humorista e um monte de coisas mais estaria no exílio. Ao tempo que torço por sua reabilitação, cabe tentativa de adensar a convivência com a culta família do Rio Grande do Sul mediante fruição de reminiscências do patriarca, das quais venho me ocupando neste blog.
Na quadra final de suas lembranças (“Solo de Clarineta”, segundo volume), o memorialista dera de conversar com o espelho refletindo, não sem críticas, acerca de sua obra ficcional.
“Que penso de mim como escritor? Ora, depende da ocasião. Nos momentos escuros, minha tendência é considerar tudo quanto produzi até hoje medíocre ou mesmo mau. Nas horas claras, porém, olho com mais indulgência para a minha própria obra e concluo que, dentre os vinte e poucos livros que até esta data escrevia, uns três ou quatro possuem alguma importância, e pelo menos um deles – creio que O Continente – talvez me sobreviva por algum tempo.
“(…) Não sou um escritor inovador, não trouxe nenhuma contribuição original para a arte do romance. Tenho dito, escrito repetidamente que me considero, antes de mais nada, um contador de histórias. Ora nos tempos que correm, contar histórias parece ser aos olhos de certos críticos o grande pecado mortal literário. A chamada ‘boa crítica’ considera a história ou estória, como queiram, uma forma inferior de arte. Na minha opinião isso é por um lado uma atitude esnobe, e por outro um equívoco semântico, segundo o qual história passa a ser um sinônimo de anedota, enredo (…).”
“Desde o minuto em que nasce, a criatura humana não só entra na História, da qual não poderá jamais livrar-se, como também começa a sua estória. Não conheço biografia que por mais erudita, seca e sem imaginação que que seja consiga fugir de contar uma estória.”
Singular é que o pai do Luis Veríssimo, à proporção que desenrolava seu mergulho no passado com foco nos anos de 1970, trazia a valor presente suas análises e observações, digamos, sobre literatura. Realça-lhe a importância, diz das experiências contemporâneas heterodoxas e esquisitas no manejo das palavras e em meu juízo decreta, de passagem mas com presciência (afinal, são quase cinquenta anos), a vulnerabilidade, a inoperância do ChatGPT, ferramenta intrigante e instigante que no entretanto, ao menos no estágio atual, não logra “exprimir o não exprimível”, daí ser falida da condição de ancoragem na “sintaxe psicológica”.
“Nota-se também hoje em dia uma grande preocupação com a busca de novos meios de expressão verbal. Nunca a linguagem literária foi tão importante como em nosso tempo. Fazem-se com as palavras e suas combinações sintáticas as mais abstrusas e estranhas experiências. Estou certo também de que nesse setor minha contribuição tem sido pobre ou nula. Não ignoro, porém, que para tentar descrever o indescritível, exprimir o inexprimível, transmitir ao leitor certos estados de espírito particulares – angústias, alucinações, sonhos, delírios e mesmo certos pensamentos e sentimentos sutis do cotidiano – o escritor é compelido a esquecer a sintaxe gramatical oficial e recorrer à sintaxe psicológica. (No Brasil ninguém faz isso melhor que Clarice Lispector e Guimarães Rosa, na minha opinião duas figuras de estatura internacional.)
“Mas aí temos um terreno perigoso que só os realmente grandes podem trilhar, pois nunca estamos livres do perigo de ver as palavras usadas não como um meio de comunicação entre o autor e o leitor, mas sim como peças dum jogo esotérico, hermético e, portanto, como um fim em si mesmas. Creio que o enigma da vida é já tão complicado, que o escritor não deve criar em torno dele outro enigma, nem mesmo de natureza verbal. A poesia, essa sim, é o reino das palavras, o campo próprio para experiências imagísticas, metafóricas, em suma, para toda essa metafísica ou alquimia da linguagem. E estados de alma existem que nem a poesia consegue descrever ou sugerir, e é nesse ponto que a música pode vir em seu socorro (…).”
A lírica depressão pós coito referida pelo escritor genial dos pampas não raro é experimentada peculiarmente pela turma que cria (não é procria), os artistas e as artistas da escrita, da música, da dança, do cinema, do teatro, das artes plásticas, da fotografia, que, ao fim de suas produções, resultam perdidos neste mundo de eterno padecer, decorrente do cancelamento ou mesmo da glória.
“Em geral, quando termino um livro encontro-me numa confusão de sentimentos, num misto de alegria, alívio e essa vaga tristeza que vem após o ato do amor físico satisfeita a carne. Relendo a obra mais tarde, quase sempre penso assim: ‘Não era bem isto que eu queria fazer.’
“Chegamos assim a um assunto que eu gostaria de discutir com mais vagar. Sou habitualmente apontado como um escritor erótico ou mesmo pornográfico.”
Vai ser conhecida logo, logo a discussão desse aspecto (do e sobre o Erico Veríssimo).
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07/04/2023
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