Memórias/ Memorialistas LXXXI

Como muitas pessoas, aprendi, adolescente, que não se fala mal de quem acabou de morrer – mesmo das pessoas detestadas ou detestáveis. Passados os anos, até podemos criticá-las. Mas a hora da morte exige respeito aos familiares do falecido e ao próprio mistério do fim da vida. Aí está – ou estava? – um traço essencial da boa educação: respeitar a morte. 
– Renato Janine Ribeiro –

Se na plenitude de minha capacidade mental, não me sobraria alternativa senão desistir deste blog quase nunca lido, quase nunca comentado. Quem perpetra uma escrita fica bordejando, em seguida se acomoda no berço esplêndido – até a primeira estocada, efeito devastador em quem se achava. Circunstância agravante: quando o elogio se origina de pessoa de nosso círculo próximo. Não me venha de borzeguins ao leito, não me venha com aquela historinha de que é crítica construtiva, que dói mas é para o meu bem. Isso não cola.

O desabafo se deve a que incauta, angelical leitora me cobrira de encômios. Vislumbrou, em textos meus, exibicionismo prolixo (lembrei, ela também aludiu à melancolia).  Congreguei energias para assimilar as aleivosias sem no entanto saber o que mais (de)meritório – sair por aí com uma melancia na cabeça à la Carmem Miranda ou me transmutar no deputado Eduardo Suplicy esgrimindo, redundante, o Renda Mínima por horas e horas no parlamento. Ou as duas hipóteses. Até aí, creiam, o sacode entrara como música suave em meus ouvidos. O que me arremessou de forma brutal no divã da terapeuta foi minha fã ter revogado meu horizonte de adolescente e, contrariando os ensinamentos hauridos no seu recentíssimo PhD em Direito, me chamou de ancião. Ancião, não.

Intuo que já estou recuperado após a artilharia pesada e torno ao Erico Veríssimo consoante assinalado na postagem anterior. Trata-se de saber se nosso cavaleiro dos pampas é, ou não, pornográfico em sua literatura.

Por que – perguntam-me às vezes – tenho tanta preocupação com o sexo? Ora, respondo, decerto é porque no fundo sou um puritano. Mora dentro de mim um pastor protestante a pregar interminavelmente um sermão apocalíptico contra o pecado da carne, e eu não posso consentir que esse homenzinho emascule as minhas personagens ou a mim mesmo.

“Por outro lado quero contribuir para que o problema do sexo seja examinado com mais coragem, honestidade, espírito adulto e… saúde; Muitas vezes fico alarmado ao pensar que, relativamente falando, um leitor sente menos indignação ao tomar conhecimento do assassínio de seis milhões de judeus nas câmaras de gás asfixiante dos campos de concentração nazistas, ou do lançamento da bomba atômica em Hiroxima que redundou na morte de mais de cem mil pessoas, ou ainda ao saber que mais de dois terços da população do Brasil vive numa miséria abjeta – do que quando lê num romance uma cena erótica descrita com clara franqueza. O que quero dizer é que noto uma desproporção absurda, direi mesmo monstruosa, entre a natureza e a intensidade desses dois tipos de indignação.

“Falando com a maior sinceridade, para mim pornografia mesmo é a crueldade do homem para com seu semelhante, a exploração do homem pelo homem; obscenidade é a guerra e o genocídio. Os mocambos do Recife, as favelas do Rio e de centenas de outras cidades da nossa terra constituem as mais indecentes e repulsivas páginas e cenas da vida brasileira.

Não custa recordar que essas palavras chegaram ao público há quase cinquenta anos, portanto na década de 1970. De lá para cá, muita coisa mudou para melhor. Será? Por exemplo, nesse quinquênio último no Bananão (Ivan Lessa) preponderou o moralismo, que, na abalizada definição do jornalista Reinaldo Azevedo, é a moral deformada.

“Isso nos dá uma ideia da terrível importância da linguagem. Vivemos tolas e terríveis ilusões semânticas. Por causa de palavras ou frases matamos ou morremos, sentimo-nos desgraçados ou infernizamos a vida de nossos semelhantes. Qualquer ato ou fato, por mais provável que seja, de acordo com paradigmas morais rígidos, perde a sua força, a sua natureza pecaminosa e tende a ser ignorado ou esquecido quando não verbalizado, principalmente em romances. Fazer, pois, não é tão importante, tão grave quanto dizer ou escrever. Quantas vezes transferimos a culpa duma situação vergonhosa – que na realidade cabe a um regime político-econômico ou a uma conjuntura social – para cima dos ombros do jornalista ou do ficcionista que ousou reproduzi-la num reportagem  ou num romance?

“E é exatamente por causa da exagerada importância que damos às palavras que nós muitas vezes resolvemos nossos problemas apenas no papel, isto é, de maneira verbal, e vamos dormir tranqüilos. Porque se ninguém jamais pronunciar ou escrever a palavra puta (desculpem-me, que se me escapou o ‘nome feio’!) a prostituição deixará de ter existência real.”

O ora exposto será o derradeiro registro dentro do tópico em questão, salvo se, ainda no recesso das memórias contidas no volume 2 do Solo de clarineta, em sequência eu trouxer à baila as impressões do Erico Veríssimo sobre sua religiosidade.

Sinto que os três anos que estudei em colégio salesiano terão alguma influência na decisão de continuar ou não.

#Ivan Lessa
#Renato Janine Ribeiro
#Erico Veríssimo
#Solo de Clarineta 2
#Reinaldo Azevedo

29/05/2023
(361)
mmsmarcos1953@hotmail.com

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