Memórias/Memorialistas (LXXVIII)

Só um tolo não se interessa pelo seu passado.
– Sigmund Freud –

Repassando este tópico dos memorialistas me dei conta de haver deixado o Pedro Nava tanto tempo à margem da ribalta – desde novembro de 2021. Pura soberba minha. Sou daqueles técnicos de futebol que desfrutam o luxo de possuir numeroso (e caríssimo) elenco, treinam o time “A” como se fosse o time “B” e o time “B” como se fosse o time “A”. Meu Vasco pontificou assim numa época remota (hoje é aquela coisa deplorável), vogando em simultâneo o “Expresso da Vitória” e o “Expressinho”, um excursionava para disputar torneios internacionais e o outro ficava por aqui encarando campeonatos nacionais ou regionais; não vi atuando nenhum deles pois a farra cruzmaltina terminou no ano em que este vale de lágrimas me viu chegar.

Neste blog, o apuro é invejável: tem-se plantel com quatro memorialistas (os outros, Paulo Duarte, Afonso Arinos e Erico Veríssimo) cracaços que correspondem a 22 jogadores cada um, inteirando plantel de 88 atletas da bola, ou melhor, das letras. O Pedro Nava adentrará o gramado na contação de episódios, um no primeiro tempo, outro no segundo, o terceiro na prorrogação e o quarto e último na decisão por pênaltis.

Sem ligar para minha prancheta de técnico, o inconfundível capitão Nava sobraça o quarto volume de suas memórias. Tanto que abre o livro para consultá-lo, câmeras possantes espalhadas pelo estádio (dificuldade minha para chamar de arena) nos permitem ler o trecho de “Beira-Mar” referindo políticos em término de campanhas realizadas nas Minas Gerais, nos anos de 1920. Vivemos agora, no Brasil todo, o início delas. Portanto, que os ocasionais leitores e leitoras façam a associação que entenderem pertinente com os candidatos(as) de hoje, perguntando-se, transcorrido um século de lá pra cá, se teria mudado algo.

“(…) Dias também agitados eram os de chegada de políticos. Vinham de excursões consagratórias no interior, voltavam de eleições unânimes, chegavam para ler ou depois de ter lido plataformas. Com Bernardes e Melo Viana a vibração cívica chegava a paroxismos. Os dois eram realmente populares. Cada qual, a seu gênero, representando o símbolo fálico e genitor que a psicanálise e o freudismo emprestam à figura dos chefes de estado. Melo Viana era íntimo, dadivoso e paternal. Bernardes era distante, punitivo e paternalista. Uma chegada de Melo Viana era coisa inesquecível. Ele descia do seu trem e cumprimentava os políticos admitidos à plataforma. Seu tomara-que-chova esperava na praça e a multidão urrava à distância. De repente era como se o próprio Presidente obedecesse a um impulso insopitável. Ele mesmo dispensava o carro oficial, afastava os guardas, passava por cima ou rompia os cordões de isolamento, atirava fora o chapéu e caía em cheio nos braços do povo. E começava para os Secretários e Oficiais de Gabinete aquela maçada de subirem a pé até ao Palácio. Isso, de fraque e ao sol sertanejo.”

fontes: https://hu.wikipedia.org/wiki/Fernando_de_Melo_Viana e https://pt.wikipedia.org/wiki/Artur_Bernardes

E eu aqui, no meu notebook sucessor das máquinas de escrever elétricas ou não, digitando à sombra, como que protegido das intempéries da secura do cerrado neste fim de agosto, saboreio a narrativa. Me preparo para o espocar do foguetório, lobrigo os puxa-sacos suarentos na faina de abeberar as benesses e prebendas agarradas como cracas nas franjas do poder, e poder mesmo pois estamos tratando das Minas Gerais. Voltemos então ao Nava.

“(…) Nestas manifestações a figura de proa era um cartorário muito conhecido na cidade e que tinha o apelido de Clamor Público. Apareciam foguetes como por milagre e Melo Viana – alto e elegante – era como um baliza a conduzir aquela massa humana. Já as de Bernardes eram impressionantes. Ele era mantido dentro de um vasto espaço vazio feito por tiras de mãos dadas a seus partidários mais ferozes, como por exemplo meu amigo César Damasceno. Esse se descobrira de repente uma vocação política e queria fazer sua carreira sob a copa da árvore frondosa do bernardismo – a que aderira, fazendo curva de cento e oitenta graus, atraído, aliciado, convertido pelo João Gomes Teixeira. Quando o homem vinha da Viçosa ou do Rio o nosso César em vez de tomar posição ao lado dos cadetes do oficialato de gabinete, queria mostrar mais dedicação ainda e assim cumpria mandados, encarregava-se não de redigir, mas de levar cartas e telegramas aos Correios, de despachar volume e de misturar-se aos toma-larguras dos cordões de isolamento humanos que distribuíam os empurrões e coices que mantinham à distância os correligionários mais chegadores que queriam tocar a mão na figura sagrada do Chefe. Havia paradas obrigatórias e novos magotes engrossavam a multidão já comprimida. Irrompiam oradores e o cortejo parava para escutar. Impassível e gelado o grande líder ouvia o discurso, respondia em palavras corretas e breves, sempre mais ou menos as mesmas, em cada estação daquela marcha apoteótica. A última já era no Grande Hotel onde ele assomava à varanda do canto do primeiro andar e hirto, cipréstico – arengava mais uma vez as massas antes de recolher-se.”

E, por fim, saltamos das ‘Nestas manifestações’ para ‘Estas manifestações’, descontinuando nosso convívio atentos na abordagem sociológica do médico e poeta Pedro Nava, mineiro da Zona da Mata como o meu pai.

“(…) Estas manifestações e as arruaças dos estudantes eram as únicas coisas que sacudiam a quietude das ruas de Belo Horizonte. Um frêmito passava como o vento que enruga a superfície de um lago. Mas logo a força da gravidade e o próprio peso das águas tornavam-nas quietas e seu espelho estagnado voltava a refletir as mutações dos céus e as nuvens sempre diferentes que neles deslizavam – dando uma impressão de vida. Entretanto os entusiasmos arrefeciam e a mineirada deixava-se de nove-horas e voltava ao seu ramerrão habitual de que uma das coisas mais importantes era o trabalho de se gozarem uns aos outros. De indivíduo a indivíduo em cada bairro, de bairro em bairro em cada cidade, de cidade em cidade em cada zona. Mineiros do Triângulo gozam os do Oeste. Os do Sul, a Mata. Os do Norte, o Centro e estes a todos. Minas é o único Estado do Brasil capaz do refinamento de rir de si mesmo…”

Os três outros episódios ficam para a subsequente (ou subsequentes) postagem.

#Pedro Nava
#Beira-Mar
#Freud
#Artur Bernardes
#Fernando de Melo Viana

03/09/2022
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