Obsessões musicais (XXVII)

(…) a memória é contrária ao tempo. Enquanto o tempo leva a vida embora como vento, a memória traz de volta o que realmente importa, eternizando momentos.
– Adélia Prado –

Universo da música, duplas de artistas que não se dissolvem ao menos em nosso imaginário. Morre um(a) integrante ou a separação (de ordinário traumática) explode na imprensa, ainda assim o duo sobreexiste. No exemplo primeiro, podemos arrolar Leandro & Leonardo, Claudinho & Bochecha, João Paulo & Daniel, Milionário & Zé Rico, Paraná & Chico Rey. No segundo, inúmeros são os pares que, até de forma litigiosa, incursionaram por caminhos distintos, tendo alguns deles(as) passado a explorar outros filões. Não me deterei nisso, basta de trazer à colação desentendimentos, agressões.
Nesse ritmo, exalto duplas que atravessaram décadas trabalhando em conjunto, proficuamente, fechadas embora para outras parcerias, insculpindo em nosso cancioneiro (termo vetusto; usá-lo é coisa vetusta), na música popular brasileira obras admiráveis, quer pela letra, quer pela melodia: Antonio Adolfo e Tiberio Gaspar, Jair Amorim e Evaldo Gouveia (ambos falecidos), Michael Sullivan e Paulo Massadas, Antonio Carlos e Jocafi, Sá e Guarabyra (era um trio, integrado pelo falecido Zé Rodrix).

Desafino, pois que divorcio o Adolfo do Tiberio. E o faço timbrando a relevância que teve à época (há quarenta e cinco anos) o bolachão “Feito em casa”. De par com a excelência artística do LP, inevitável o registro do que significou tal lançamento. Fiquemos com quem reúne mais qualidades para descrever o fenômeno discográfico:

– Felix Baigon –

“Precursor da nossa música instrumental, o pianista e arranjador Antonio Adolfo gravou e lançou, em 1977, o disco mais representativo da música independente no Brasil.

“Batizado de ‘Feito em Casa’ (…).

“Terminada a gravação da fita, o maestro não conseguiu espaço em nenhuma gravadora em atividade na época e resolveu concluir o disco de forma totalmente artesanal e independente, daí o título do álbum.

“Desde a confecção da capa até a montagem e embalagem. As negociações do álbum eram feitas diretamente com os lojistas, em seus shows e em viagens por quase todo o Brasil.

“Certa feita, a cantora Carol Saboya, que é filha de Antonio, contou-me passagens importantes da carreira dele e disse que tudo nesse disco foi artesanal mesmo.

Assim como era feita a música instrumental ao redor do mundo nessa época.”

– Fellipe Torres –

“Para se aventurar musicalmente em busca de um público, hoje, na era da informação, não é preciso muito além de uma câmera, um violão e acesso à internet. Claro, o tradicional modelo de indústria fonográfica permanece por aí. Nas últimas duas décadas, reinventou-se como nunca para se manter relevante no modo de gravação, edição, distribuição e consumo de conteúdo. Mas, se analisadas as dificuldades históricas enfrentadas por artistas em busca de um lugar ao sol, é seguro dizer: nada será como antes.

“O protagonismo dos músicos nas várias etapas desse processo reverbera a atmosfera pós-moderna da década de 1970, quando ganhava força no Brasil e no mundo a cultura DIY (sigla para ‘do it yourself’, ou ‘faça você mesmo’). De braços dados com a liberdade intelectual, o movimento pregava maneiras alternativas de se criar, sem as amarras de grandes corporações. Imbuído desse espírito aventureiro, o pianista e arranjador carioca Antonio Adolfo produziu e lançou, há 40 anos (atualizo: 45 anos. Marcos), o vinil Feito em casa, considerado por muitos o primeiro álbum independente do Brasil.

“‘Quis fazer o que estava sentindo. Não queria compromisso com paradas de sucesso, com gravadoras. É um disco bem plácido, bem calmo. Juntei os músicos. Na época, tinha uma (perua) Belina. Colocava o piano nela, os discos, os endereços para onde ia me apresentar… O Tim Maia me deu muitas dicas, porque já tinha feito aquele disco da fase racional’, comentou Antonio Adolfo no programa Passagem de som, do Sesc, em conversa com o músico Arrigo Barnabé.

“A ousadia do instrumentista abriu caminho para artistas como o próprio Arrigo, junto com Danilo Caymmi, Francisco Mario, Itamar Assumpção. ‘O disco é um marco fundamental, já que foi a partir de seu lançamento que – pela primeira vez – desenvolveu-se uma discussão em torno do tema. Uma cena independente surge tanto como espaço de resistência cultural e política à nova organização da indústria, quanto como única via de acesso ao mercado para um variado grupo de artistas’, assinala o pesquisador Eduardo Vicente, doutor em comunicação pela ECA/USP, na obra A vez dos independentes(?): Um olhar sobre a produção musical independente do país).”

Ouçamos então esta música cativante (https://www.letras.mus.br/antonio-adolfo/aonde-voce-vai/), que, vim a saber agora, integrou a trilha sonora de “O Homem de Toronto”, filme recém lançado com pompa e circunstância pela Netflix. Quanto à letra ora transposta, me defenderei valentemente de qualquer peça acusatória no sentido de que minha escolha fora feita devido à presente campanha eleitoral.

Aonde Você Vai

Onde você vai, com tanta pressa?
Com tanta pressa?
Com tanta pressa?
Onde você vai, com tanta luta?
Com tanta luta?
Com tanta luta?

Eu vou, eu não sei onde eu vou
Mas eu não sei onde eu vou, meu senhor
Eu vou, eu não sei onde eu vou
Mas eu não sei onde eu vou, meu senhor

Onde você vai, com tanta impaciência?
Tanta impertinência?
Tanta maledicência?
Onde você vai, com tanta impaciência?
Tanta impertinência?
Tanta maledicência?

Eu vou, eu não sei onde eu vou
Mas eu não sei onde eu vou, meu senhor
Eu vou, eu não sei onde eu vou
Mas eu não sei onde eu vou, meu senhor

Onde você vai, com tanta busca?
Com tanto medo?
Com tanto ódio?
Onde você vai, com tanta busca?
Com tanto medo?
Com tanto ódio?

Eu vou, eu não sei onde eu vou
Mas eu não sei onde eu vou, meu senhor
Eu vou, eu não sei onde eu vou
Mas eu não sei onde eu vou, meu senhor

Onde você vai, com tanta ganância?
Tanta arrogância?
Tanta ignorância?
Onde você vai, com tanta ganância?
Tanta arrogância?
Tanta ignorância?

Eu vou, eu não sei onde eu vou
Mas eu não sei onde eu vou, meu senhor
Eu vou, eu não sei onde eu vou
Mas eu não sei onde eu vou, meu senhor

Onde você vai, um laro lera
Um laro lera
Um laro lera
Onde você vai, um laro lera
Um laro lera
Um laro lera

Eu vou, eu não sei onde eu vou
Mas eu não sei onde eu vou, meu senhor
Eu vou, eu não sei onde eu vou
Mas eu não sei onde eu vou, meu senhor
Eu vou, eu não sei onde eu vou
Mas eu não sei onde eu vou, meu senhor
Mas eu não sei, eu não sei, eu não sei onde eu vou
Mas eu não sei onde eu vou, meu senhor

– Antônio Adolfo –

#Adélia Prado
#Feito em casa
#Antonio Adolfo
#Aonde você está

01/10/2022
(354)
mmsmarcos1953@hotmail.com

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