Memórias/Memorialistas (LXIX)
Cultura, arte e justiça nos humanizam. São o contraponto da truculência.
– Andrea Pachá –
No início deste estagnado ano me despedi do Erico Veríssimo, marcando reencontro para breve com vista a prosseguir nas considerações sobre o relacionamento entre autor literário/personagem. Tenho que, ao fazê-lo, outro vínculo ainda emerge incidentalmente: escritor/público.
O gaúcho Prêmio Nobel de Literatura (ele não ganhou a honraria internacional; pra vocês verem que suecos também cometem asneiras), já quase no finzinho do primeiro livro de suas memórias de que me ocupo, Solo de Clarineta, aduz sutis confidências a respeito da predileção por esse ou aquela personagem do majestoso romance O Tempo e o Vento, sete volumes, lançado também como filme e minissérie.
“Sempre procurei tratar minhas criaturas com certa imparcialidade sentimental, como um pai – digamos assim – divide sua afeição
igualmente entre os inúmeros filhos. Devo confessar, no entanto, que há personagens minhas pelas quais tenho pouca admiração ou nenhuma estima. Por exemplo, não simpatizo nada com Licurgo Cambará, embora reconheça que o homem possui suas virtudes. E já que estamos no caminho das simpatias, declaro em voz alta que tenho um fraco pelas mulheres de O Tempo e o Vento, como Ana Terra, Bibiana e Maria Valéria. Quando esta última era ainda moça, tive lá as minhas implicâncias com ela, mas depois que a filha do velho Florêncio envelheceu e ficou parecida com as outras matronas da família, passei a votar-lhe uma admiração temperada de ternura.”
Declarações pois de um feminista juramentado, que em passant reafirma verdade absoluta, personagens de livro são de carne e osso, têm personalidade jurídica, CPF, e traz à baila um capitão (não nos percamos pela patente) cujo passamento faz desabar um leitor lá da fronteira sulina, conterrâneo de meu amigo Bolivar Tarrago Moura Neto (tchê, me mande sinal de vida).
“Lembro-me do gosto e da fluência com que narrei a história dum certo Capitão Rodrigo. Muitos anos depois que publiquei O Continente
encontrei um gauchão simpático de Uruguaiana que me confessou que, ao terminar o capítulo em que descrevo a morte do herói, não pôde conter o pranto, e naquele dia ficou em casa, de luto, como se tivesse perdido um membro da própria família. Não tenho memória de nenhum elogio de crítico que me haja tocado tanto como as palavras desse leitor.”
Em contrapartida, o pai do Luiz Fernando Veríssimo (nosso humorista oitentão logo vai estar com a saúde restabelecida) vem nos demonstrar a loucura típica de todos os leitores e leitoras
“Por outro lado recebi várias cartas em que os signatários protestavam
contra a morte do capitão. Mais de um chegou a insinuar que eu o havia assassinado por pura inveja.”
Fecha-se esta postagem alinhando o escritor gaúcho a outro escritor, que nas horas vagas compõe e canta músicas – O meu amor, Atrás da porta, Pedaço de mim. Retenham esta declaração feita por Chico Buarque, evocada por Alberto da Costa Lima: “Há sempre, pra mim, um grande mistério na alma feminina. Eu tenho uma grande curiosidade com relação à mulher, como ela pensa, como ela age. Eu sou um espectador, um voyeur, um vedor das mulheres. Gosto de ver como elas se movem, ver como elas raciocinam, ver como elas reagem diante das coisas. É sempre uma surpresa pra mim. Não acaba. Eu me considero um grande desconhecedor da alma feminina, ao contrário do que se fala… Virou um lugar-comum por causa das canções. Eu sou um sujeito muito curioso exatamente por desconhecer, por querer saber, querer entender e não entender nunca.”
Notem a afinidade entre os dois virtuoses conforme este outro solo do Erico Veríssimo:
“Como pode um romancista do sexo masculino – perguntou-me alguém um dia – descrever com verdade e autenticidade os sentimentos duma mulher? Expliquei-lhe que, no meu caso, sempre que tinha de fazer isso eu procurava ser essa mulher. Meu interlocutor me olhou meio espantado e calou-se, aparentemente insatisfeito, e talvez até meio desconfiado de minha masculinidade.
“Ninguém negará a grandeza e importância literária à obra de Ernest Hemingway. Mais de um crítico, porém, tem mencionado o fato de não se encontrar nos contos, novelas e romances desse escritor uma única personagem feminina verossímil, viva, plenamente realizada em sua condição de fêmea. Creio que isso se deve à obsessão que o grande escritor americano tinha de provar que era macho – o caçador de leões, o explorador, o aficionado das corridas de touros. No momento de descrever suas personagens do sexo oposto ele recusava, imagino, liberar seu componente feminino e meter-se no corpo delas, sentir como elas, amar como elas…
“No fundo talvez isso fosse um sinal de insegurança quanto à sua própria condição de macho, o temor de que alguém pudesse pôr em dúvida sua virilidade.”
#Solo de Clarineta
#Erico Veríssimo
#O Tempo e o Vento
#Chico Buarque
#Alberto da Costa Lima
26/05/2021
(334)
mmsmarcos1953@hotmail.com