Era de uma vez
As palavras chegam como guardas. É por meio delas que ficamos sabendo quando somos bem-vindos, corremos perigo ou somos inscientes. Como ensinou um filósofo, as palavras fazem coisas como juramentos, ofensas e promessas. Com elas travamos uma infinito combate contra a ignorância.
– Roberto Damatta –
Dias desses me mandaram pelo Whatsapp um filmete, de outubro de 2019, em que a deputada estadual Isa Penna lia da tribuna da Assembleia Legislativa de São Paulo o poema Sou puta, sou mulher, de Helena Ferreira, das Minas Gerais.
Um bafafá danado. Deputado (da extrema direita, pois não) pediu aos pares que se cassasse o mandato da deputada do PSOL por quebra de decoro. Cassação não houve – em realidade, era um protesto feminista -, tanto que até hoje a parlamentar está aí, ou melhor, lá, no Palácio 9 de Julho, pelo visto já tendo superado (tomara) vergonhoso episódio, ocorrido no mesmo recinto um ano depois, quando foi assediada por um deputado cafajeste.
Saio dos eflúvios da poeta Helena mineira para evocar poeta goiana. E que poeta. Uma tal de Cora Coralina, que por ocasião das comemorações do Ano Internacional da Mulher em 1975 lavrou Mulher da vida, minha irmã: “(…) No fim dos tempos/No dia da Grande Justiça/do Grande Juiz. Serás remida e lavada/de toda condenação./E o juiz da Grande Justiça/a vestirá de branco em/ novo batismo de purificação./Limpará as máculas de sua vida/humilhada e sacrificada/para que a Família Humana/possa subsistir sempre,/estrutura sólida e indestrutível/da sociedade,/de todos os povos,/de todos os tempos./Mulher da Vida,/Minha irmã.
Num rigor esta postagem nada tem a ver exatamente com as prostitutas, dignas de todo o meu respeito incondicional. As observações de início feitas servem apenas para chamar à cena três mulheres de militância a mais elogiável. A primeira, pela autoria do poema; a segunda, por difundi-lo em plena casa dos fazedores de lei do maior estado brasileiro; e a terceira, de Goiás Velho, pelo fato de ser responsável pela convocação de mais duas mulheres, uma é professora (Lu), a outra é aluna (Antonia). Ou seria o inverso?
ERA DE UMA VEZ… TUDO DE UMA VEZ!
E, como diz meu sobrinho de 3 anos, “era de uma vez”, ia eu andando na rua e escuto:
— Professora!
Era dona Antônia, a faxineira da escola, me pegando no braço e dizendo:
— Você me ensina ler, professora? Eu queria aprender a ler mas nunca pude, só que tô decidida. Se a senhora quiser me dar leitura, eu te pago 100 reais por mês! Eu vou pagar pelo meu estudo, todo mês a senhora ganha 100, eu não quero mais ser pessoa sem leitura. Meu sonho é ir na lousa e ler jornal.
Dizendo isso me mostrava abanando a nota de 100 como um grande prêmio que por mim seria alcançado.
— Sabe, professora, a senhora ganha 100 e eu mudo muito a minha vida. Sorriso de sedução, me perguntou:
— Tu topa?
A aluna que escreveu o texto na minha lousa não mais aqui está. Foi enterrada no sábado.
Morreu da “gripezinha”. É preciso dar nome e voz para quem chama até seus entes queridos por números.
Ela era uma senhora, se chamava Dona Antônia, tinha 67 anos e eu tenho orgulho, muito orgulho de dizer que eu a alfabetizei. Dona Antônia conheceu a história de Cora Coralina e, quando conseguiu, escreveu este pequeno texto da foto.
Olhou e me disse:
— Professora, eu não sou mais qualquer uma, eu tenho leitura e sei até escrever meu nome, obrigada, professora!
Ela me dizia várias coisas e realizou também o seu sonho: “comprar o jornal e ler pra professora”, um jeito de provar “agora, eu tenho leitura!”.
Fica aqui a letra que ela aprendeu comigo e tanto tinha orgulho em perguntar se eu achava mesmo se estava bem bonita. Registro aqui meu orgulho por tudo que ela me ensinou e fica aqui também o meu “Dona Antônia, Presente”!
Nunca vou esquecer seu abraço e seu jeito empoderado de dizer:
— Sabe, eu não assino mais com o dedão, eu “seio” ler e a moça do INSS quando veio me dar o carimbo de tinta eu disse:
— Me dá a caneta, eu sei fazer meu nome!
Onde você estiver que esteja em paz, que Deus e “Cola Colarina” lhe recebam. Descansa em paz, aluna querida!
– Lumarialu –
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28/06/2021
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