Memórias/Memorialistas (LXXII)

A memória é uma voz submersa, um jogo perverso entre lembrança e esquecimento.
– O lugar mais sombrio, de Milton Hatoum –

Reconfortante haver tomado as três doses da vacina – pedi música no Fantástico, o que foi liminarmente indeferido, seja porque não encontraram nenhuma tatuagem no meu corpo, seja porque minha escolha sonora não provinha do mundo sertanejo.

Não aguentamos mais falar, ver, discutir, sofrer as intempéries da pandemia de Covid. Quando a gente achava que tudo estava “nos conformes”, lá vem a televisão difundir que alguns países europeus reingressaram na fase de isolamento e tome novas reportagens sobre a situação de UTIs. Cadê o oxigênio?

Se o tema voltou à baila, cumpre tirar do prelo outra postagem para mais reverências ao nosso Pedro Nava, motivo pelo qual o 4º tomo de suas memórias, Beira-Mar, resultará aberto. Eminencio Marcelo dos Santos Libânio, caroneando Zoroastro Viana Passos, que, consoante anúncio anterior (340), deveria ser o personagem deste registro.

Laennec listening to the chest of a patient Autor: Ernest Board Año: 1910

“(…) O professor de Clínica Propedêutica Médica era também um moço. Tinha trinta e seis anos. Dava a impressão de mais velho por sua fadiga e lentidão nos menores gestos. Andava devagar, movia-se devagar, falava devagar, opinava devagar. Chamado a ver caso difícil ouvia um por um, mantinha-se calado ou reticente, examinava lentamente o doente dos pés à cabeça, se urgido por uma pergunta, recomeçava os exames com sua conhecida virtuosidade semiológica, demorava-se na escuta do pulmão, eternizava-se na do coração (ouvindo diretamente sem estetoscópio e às vezes sem toalha) aplicando sobre a pele seu ouvido dito “de navalha”. Perguntava pelos exames de laboratório, lia-os com atenção, recomendava repetir esse ou aquele na filial de Manguinhos, entrava na famosa encruzilhada dos talvezes, sugeria esperar o quadro ficar mais claro, voltava para sua cadeira e ali espichado alagava-se de café. Reanimava, tirava o avental e saía no seu passo lento.”

Não é ocioso ressaltar que o livro Beira-Mar fora lançado pela editora em 1978. O Nava nessas passagens circulava pelos anos de 1920. Hoje, mais de um século transcorrido, tomado por um resfriado chatinho, você entra no consultório particular, após hora e meia de espera, e o médico (ou a médica) mal levanta os olhos do note e dá por iniciada a etapa de pedir dezenas e dezenas de exames, inclusive um tal de pet scan. Opção mais econômica e barata, continuemos com o vídeo do Dr. Libânio, que viria a ter um ilustre xará poucas décadas depois, Frei Betto.

“Esse homem avaro de opiniões recebia as alheias sempre com argumentação adversa ou num silêncio onde o sorriso triste era duma gelada ironia. É preciso não ter pressa, dizia ele. A natureza nos mostra inevitavelmente do que se trata um dia ou outro. E o que não descobrimos, a autópsia o desvenda – acrescentava com sua pitada de humor negro. O que temos é de colher os sinais com paciência e esperar. E isto ele fazia como ninguém. Raramente tenho visto examinar um doente como ele. Ia à exaustão. Do paciente que quando era largado caía semimorto sobre os travesseiros. Dele próprio que terminada sua inspecção, palpação, ausculta – tinha de se arrastar para sua cadeira, inundar-se de café, até ter ânimo de levantar e sair. Fisicamente o Marcelo era magro, de meia altura, olhos muito grandes à flor da face e tinha um nariz posto de lado como o dos boxeurs – o que inseria sempre um perfil no seu rosto olhado de frente – como acontece em certas figuras das fases finais de Picasso.”

            Num apanhado das dificuldades do exercício da medicina naquela época, os trechos adiante permitem inferir o porquê de haverem durado tanto tempo os médicos de família. Se travestiam de clínicos gerais, não raro imiscuídos em especialidades inúmeras para em bases seguras diagnosticar e tratar seus doentes, mercê de uma relação que não se sustentava em cifras apenas.

“Quando eu me iniciei no estudo da clínica há cinqüenta e três anos, o auxílio do laboratório e dos raios X era incipiente de modo que nossa simiologia física tinha de ser levado (sic) às últimas consequências. Tínhamos de aprender a conversar bem com o doente, a olhá-lo melhor, a palpá-lo, percuti-lo e auscultá-lo com um capricho que as gerações atuais desprezam ou ignoram. Marcelo Libânio preferia distribuir essa tarefa de ensino aos seus assistentes, dando uma ou outra aula prática e raramente preleções de anfiteatro. Lembro duma destas. Impressionaram-me sua voz alta e gemente como a dum supliciado e seu espírito de detalhe. A quantidade de matéria em salmigondis que o professor queria que metêssemos cabeça a dentro. Foi aula teórica sobre a ausculta de pulmões.”

homo vitruvianus, der vitruvianische Mensch mit Muskelanatomie

E, nestes sufocantes trechos que põem termo a esta postagem, vai-se notar a importância de o médico conhecer as reações, os sintomas revelados pelo doente. Profissionais daqueles tempos duros era carentes de ultrassom, de ressonância, de tomografia computadorizada, por isso que, à semelhança do animal que sabe da floresta, recorria o doutor ao expediente de auscultar de forma detida o padecente, a algaravia era tida como parceira do avaliador. O Nava, entretanto, se julgava incompetente para obter e amealhar todos os dados clínicos emanados do paciente, inobstante ter ponderado, na língua francesa como era de seu costume, que estrada coalhada de placas informativas mais confunde que orienta o viajor.

“Recordo seus ensinamentos sobre os ruídos da respiração normal, os aumentados ou diminuídos, as diferenças notadas na criança, no adulto ou no velho. O valor da expiração prolongada, do sopro tubário, da respiração rude, do sopro cavernoso, da pectorilóquia da tosse. Do sinal da moeda. Quando o homem entrou nos estertores eu perdi o pé completamente. Entendi erradamente que cada um tinha valor patognomônico e duvidei que me fosse possível aprender a distinguir com minhas incultas orelhas tudo que foi mencionado. Era demais, era como nadar nos planisférios celestes catando estrelas. Como me achar? dentro daquela tempestade de estertores vibrantes, bolhosos, secos, de duração curta, tonalidade variável, duração longa, regulares, irregulares, numerosos, raros; de finos, médios e largos brônquios, da traquéia, do (sic) laringe, do ápice, da base, do lóbulo médio; secos, úmidos, sonoros, surdos, estridulosos, graves, agudos, sibilantes, rocantes, piantes, bolhosos, baixos, finos, muito finos, volumosos, crepitantes, de retorno, em tafetá, cavernulosos, estalidantes, gargarejantes, discretos, disseminados, localizados, constantes, inconstantes, simétricos, assimétricos, ampulares, vesiculares, consonantes; de grossas, médias e finas bolhas; granulosos e mais outros misteriosíssimos – o estertor não classificado e o insonoro de Beau! Durante tempos apliquei-me em vão para distinguir esses sons uns dos outros. Fiquei nessa confusão até dia em que me caiu nas mãos um estudo de Mestre Clementino Fraga que foi verdadeiro fiat luz. Ele ensinava que era preciso aprender a distinguir o atrito pleural do estertor crepitante. Depois a diferençar os estertores secos – pios, sibilos e roncos. Isto feito colocar o resto dentro do grupo dos subcrepitantes desde o cirro traqueal aos que estralidam nos finíssimos brônquios. Aliás eram os únicos que eu distinguia. O resto era tapume. Trop de poteaux indicateurs…”

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28/12/2021
(341)
mmsmarcos1953@hotmail.com

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