A História é amarela (Nelson Rodrigues)
A obra de arte é uma filha rebelde que rompe com seu criador. O artista não expõe seu pensamento —no sentido de pensamento racional— pelo objeto que inventa. Ao criar, ele introduz no mundo um ser pensante e autônomo. A obra ganha vida própria, separada de seu criador, e adquire a capacidade de se relacionar com o espectador de forma direta e intuitiva. Ela transcende as limitações da linguagem verbal e alcança o universo das sensações e das emoções.
– Jorge Coli –
Comecei a ler a VEJA nos idos de 1974.
Era dirigida pelo Mino Carta, que, quando se demitira da publicação semanal, me deixou órfão, sensação atenuada pela circunstância de esse grande mestre da imprensa do Brasil haver se bandeado para a ISTO É – a qual desde então passei a fruir devotadamente, até quando, em guinada mais brusca, o italiano também repórter trouxe à luz sua CARTA CAPITAL, assumindo uma faceta de empresário. (Registro: tudo indica que, neste 2024, o afastamento dele há semanas e semanas da redação da CC se deve provavelmente a questões de saúde, o homem é nonagenário, como o é o sumido Zuenir Ventura e podemos incluir Luiz Fernando Veríssimo – prestes a completar 88).
Assinale-se que a VEJA daquela época reunia uma turma de colaboradores e colaboradoras que vou te contar. Mais para a frente, muito mais para frente, em 2017, a revista julgou por bem soltar na praça um livro com cinquenta entrevistas, intitulado A História é amarela, conduzidas por Elio Gaspari, Luiz Fernando Mercadante, Tárik de Souza, Leo Gilson Ribeiro, Lucia Rito, Hugo Estenssoro, Regina Echeverria, Eric Nepomuceno, Alessandro Porro, Zuenir Ventura (olha ele aí de novo), Selma Santa Cruz, Paulo Moreira Leite, entre muitos outros e outras.
Goste-se ou não da família Civita, goste-se ou não da VEJA (hoje, eu ainda a leio, porém mais com desgosto do que com gosto), a ninguém é dado o direito de negar a importância em nossa história, por exemplo, das Páginas Amarelas. Justificado reconhecer o acerto da Editora Abril nessa iniciativa de acomodar num livro dezenas dessas entrevistas com personalidades da cultura, da música popular e erudita, do entretenimento, da política, da economia, dos esportes, da literatura, das artes plásticas, da religião, do cinema, da dramaturgia…
Estando este blog abrigado no site do Teatro Mapati, é imperativo, tal qual se verificara no livro, abrir esta série de postagens transcrevendo palavras arrancadas de um dramaturgo tido há muito como o maior de nosso país. Antes da longa conversa, ocorrida em 04 de junho de 1969, Luiz Fernando Mercadante como sói traça um perfil do entrevistado, de que destaco
“(…) Brevemente, vai receber uma condecoração do Exército, ‘por relevantes serviços prestados’, e diz que vai contente, pois não deixa de receber nada, nem sorriso. Pessoalmente, é um desmentido à imagem difundida pela propaganda dos seus livros, que o mostra de dedo em riste, olhar feroz, quase babando. É, estranhamente, um homem doce, de voz grave mas gentil, sorriso meio tímido, um jeito de garoto. Personagens dos seus escritos viram gente, de carne e osso, como o Palhares, ‘o canalha de olhar rútilo’, capaz de beijar a cunhada no corredor. Elogiado e amaldiçoado, Nelson Rodrigues considera-se ‘um homem da sua rua, do seu bairro (Ipanema) e da sua cidade’. Nunca saiu do Brasil, pois no Méier já começa a sentir saudade.”
Abram alas portanto para ouvir o que, há cinquenta e cinco anos, era servido como brinde aos leitores e leitoras de VEJA. Tratava-se em realidade da voz do autor de teatro mais encenado Brasil adentro, Nelson Rodrigues, com sua carga ferina e atordoante. A encenação se delineou na primeira edição das Páginas Amarelas mediante performance de mísseis cujos disparos não imprecisos provieram da coxia até alcançar a caixa cênica, nimbados de etarismo às avessas (ou reverso?), machismo, racismo e “carinho” nas esquerdas. Eu sou um pierrô, sou um romântico. Mas o romântico piegas. Não o romântico de grande estilo, não o wagneriano
- Eu sou um pierrô, sou um romântico. Mas o romântico piegas. Não o romântico de grande estilo, não o wagneriano
- Eu sou uma flor de obsessão
- Na televisão, sempre que me lembro, eu digo que sou reacionário, só para chatear
- Passei à ação política simplesmente porque deixei de ser covarde. Sou um ex-covarde
- Eu sou um anticomunista que se declara anticomunista. Geralmente, o anticomunista diz que não é. Mas eu sou e o confesso
- Não, não sou católico. Creio em Deus, na vida eterna e na ressurreição de Lázaro. Mas a sobrevivência da Igreja é um problema que vai além de suas fronteiras, que interessa a toda a humanidade e que pesa no equilíbrio mundial
- Hoje, qualquer coroinha contesta o papa
- Amo a juventude como tal. O que abomino é o jovem idiota, uma das figuras mais sinistras da nossa época. O jovem, como o adulto, como o velho, comporta todos os tipos, O jovem pode ser um pulha, um santo, um herói, um covarde. (…) De repente, os mais velhos passaram a ver os jovens como o certo, o histórico, o sábio, o clarividente. O fato de um imbecil ter 17 anos transformou-se em um mérito formidável
- Eu gosto muito da TV. Eu gosto do mau gosto da TV. A pior televisão do mundo é a inglesa, com aquela mania cultural. A TV tem de ser feita para as massas, e as massas são burras e têm mau gosto e não têm nada a ver com a grande arte, com a grande música, com a grande pintura
- Acho a (tele)novela formidável. Novela tem de ser novela, folhetim tem de ser folhetim. A pior coisa do mundo seria novela de bom gosto, a novela literária. Seria o mesmo que, no Carnaval, em vez de fazer Mamãe, eu quero mamar, fazer a Nona sinfonia
- Costumo contar que, um dia, o meu táxi parou na praia, diante de uma barraquinha de grapete. E uma menina maravilhosa, de uns 17 anos, um corpo lindo metido num biquini, ainda molhado, veio comprar um refrigerante. O crioulo do grapete estava conversando com outro crioulo, serviu uma garrafinha para a menina e voltou as costas para ela e ficou conversando com o amigo. Os dois crioulos não concederam a essa menina prodigiosa a esmola de um olhar. Ela ficou lá, bebendo pelo gargalo e não olhada por ninguém. Quer dizer, a nudez do biquini tem a maior solidão da Terra: a mulher mais invisível do mundo é a mulher de biquini
- Não, não parei (de fazer teatro). Estou é sem tempo. Considero o teatro um pedaço importante da minha vida
- Mas eu dava ao palavrão uma função dramática. Depois veio o palavrão pelo palavrão, pelo prazer dos palavrões. (…) Os meus elencos me representavam com o maior desprazer e vergonha. De repente, esses mesmos elencos passaram a dizer os palavrões mais ferozes
- Cinema é uma subarte. O filme mais inteligente, mais elaborado, mais construído é, no fim de certo tempo, assaltado por uma velhice cômica
- Eu tive sete interdições, e ninguém se manifestou a meu favor. A direita, o centro e a esquerda estavam, então, contra o palavrão e a favor da interdição
- O Palhares é o brasileiro. Todo mundo gosta do Palhares. Ninguém faz objeção ao Palhares. E todo mundo inveja o beijo na cunhada. Eu só tenho encontrado Palhares. Fora os presentes, todo mundo é Palhares. Nunca vi ninguém mais brasileiro. É nascido aqui mesmo no Rio. O carioca é o Brasil. E o Palhares é feito de todos os brasileiros, menos o paulista. O paulista nunca sai de São Paulo.
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29/09/2024
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