Niña mala

(…) ainda é difícil para nós entender que nem toda forma de esquecimento é alienação, nem toda forma de recuperação do passado é uma apropriação reflexiva que permitiria o redimensionamento da ação e de suas causas. Há um esquecimento que é a força de desfazer o acontecido, que é confiança no que virá.
– Vladimir Safatle – 

Entra ano, sai ano e a Covid não cede, surge e ressurge sob as mais diversas formas. Laboratórios e institutos de ciência internacionais são verdadeiros cartórios onde se batizam essas variâncias mediante emprego do alfabeto grego – nossas A, B, C, e D escaparam, restritas a permanecer em derredor da cidade de São Paulo, vizinhas por assim dizer complicadas, uma vez que expandem e agravam o caos urbano.

Entra década, sai década e o pessoal da Suécia não cede, a academia continua ignorando solenemente o Brasil na escolha do Prêmio Nobel. Admita-se que Física, Química, Medicina e, vá lá, Economia consistem em ramos nos quais ainda estaríamos verdes, na acepção não ecológica e não partidária. Mas candidatos(as) ao da Paz temos muita gente boa e não poucas entidades merecedoras da distinção.

https://danvizi.wordpress.com/2017/03/21/o-que-saber-sobre-o-premio-nobel-de-literatura/

Da Literatura, nem se fala. Cadê justificativa para, no âmbito da América do Sul, não terem sido contemplados os brasileiros Guimarães Rosa, Drummond, Pedro Nava, Érico Veríssimo e a ucraniana brasileira Clarice Lispector, que se posicionam à altura da nobelizada Gabriela Mistral (Chile) e dos colegas de prêmio Miguel Ángel Asturias (Guatemala), Pablo Neruda (Chile), Gabriel García Márquez (Colômbia) e Mario Vargas Llosa (Peru).

Picoto a lista e salvo o último nominado para destacar uma das fascinantes obras desse artista imerso nas letras sem jamais abandonar a política.  Me refiro ao Travessuras da Menina Má, livro no qual o festejado escritor peruano faz um apanhado da América Latina e suas lutas libertadoras entremostradas pela via da dissecação de um relacionamento amoroso. Críticos literários apontam que o namoro errático do personagem principal, o tradutor/intérprete Ricardo Somocurcio, com a Niña mala metaforiza processo que eles denominam de transculturação. Nenhum dos sucessivos parceiros conjugais da Menina má – falsa chilena; peruana – era latino-americano, distribuíam-se pelas nacionalidades inglesa, francesa e japonesa. 

Desconsiderarei os demais aspectos da obra, me circunscrevendo ao caso amoroso da dupla de protagonistas. E na empreitada sublinharei os rompimentos, digamos, conjugais deflagrados pela Niña mala, que, mesmo previsíveis, reiterados, surpreendiam o companheiro.

A primeira separação – se bem que não provocada pela Menina má, à época travestida de camarada Arlette, a militante despachada para  treinamento em Cuba:

“O curso durava poucos meses. Desde o primeiro momento, ela precisava mostrar uma incapacidade total para a vida guerrilheira, simulando desmaios e coisa e tal. Enquanto isso, eu, aqui em Paris, encontraria trabalho, alugaria um apartamentinho, ficaria à sua espera…

“- Já sei, você vai chorar, morrer de saudades, pensar em mim dia e noite – interrompeu com um gesto impaciente, os olhos duros, a voz gélida. Bem, já vi que não há outra saída. A gente se vê em três meses, Ricardito.

“Passei vários dias como uma alma penada, me recriminando dia e noite por não ter tido coragem suficiente para dizer à camarada Arlette que apesar da proibição de Paúl, ficasse comigo em Paris, em vez de aconselhá-la a prosseguir naquela aventura que só Deus sabe como terminaria.”

Estava apenas começando o suplício do tradutor Ricardo pela chilena (que era peruana) na primeira etapa da saga mergulhada na clandestinidade.

“(…) tentei imaginar a chilenita transformada em namorada do comandante Chacón, vestida de guerrilheira, de pistola na cintura, boina azul e botas, conversando com Fidel e Raúl Castro nas grandes passeatas e manifestações da revolução, fazendo trabalho voluntário nos fins de semana e dando duro nos canaviais com suas mãozinhas de dedos delicados pelejando para segurar o facão, e talvez com aquela facilidade para a metamorfose fonética que eu já conhecia, falando com a musicalidade demorada e sensual dos caribenhos. Na verdade, eu não conseguia imaginá-la no seu novo papel: sua figurinha escorria entre os meus dedos como se fosse líquida. Teria se apaixonado pelo tal comandante? Ou ele era apenas um instrumento para participar mais tarde da guerra revolucionária no Peru?”

O leitor e a leitora da obra poderiam razoavelmente supor que nosso herói destrinchador das letras estrangeiras acomodava-se no seu abandono já de meses e meses malgrado o enrosco com outra mulher, a espanhola Carmencita (houve outras). Mas as trapaças da sorte aprontaram naquele prédio da Unesco, em Paris.

“- Puxa, puxa, como este mundo é pequeno – disse, aproximando-se e oferecendo a bochecha. O que faz por aqui, bom menino?

“- Trabalho aqui, como tradutor – consegui balbuciar, totalmente desconcertado pela surpresa, e muito consciente do aroma de essência de lavanda que me entrou pelo nariz ao beijá-la. Era ela, mas foi necessário um grande esforço para reconhecer, naquela cara tão bem maquiada, naqueles lábios vermelhos, naquelas sobrancelhas depiladas, naquelas pestanas sedosas e curvas que sombreavam os olhos travessos que o lápis negro havia alongado e aprofundado, e naquelas mãos de unhas compridas que pareciam recém-saídas da manicure a camarada Arlette.

“- Como você está mudada – disse eu, examinando-a de cima a baixo. – Faz uns três anos, não é?

“- Mudei para melhor ou para pior? – perguntou, totalmente dona de si mesma, dando uma meia-volta de modelo, no mesmo lugar, com as mãos na cintura.

“- Para melhor – reconheci, ainda sem me recuperar do choque. – Na verdade, está belíssima. Imagino que não posso mais chamá-la de Lily, a chilenita, nem de camarada Arlette, a guerrilheira. Como diabos se chama agora?

“Ela riu, mostrando-me a aliança de ouro na mão direita:

“- Agora, uso o nome do meu marido, como se faz na França: madame Robert Arnoux.”

E os dois, Ricardo e Arlette, continuaram amantes. Se danasse o esposo, o tal do monsieur Robert, que no entanto, tempos depois, desabafou com o tradutor Ricardo, rival não sabido.

“- Então, você não sabe – murmurou, secamente. – Ou está fazendo uma gracinha?

“Desconcertado, eu não tinha o que responder.

“- Toda a Unesco já sabe – acrescentou baixinho, com ironia. – Sou o bufão da organização. Minha mulher foi embora, e eu nem sei com quem. Pensei que fosse com você, senhor Somocurcio.

“A voz se cortou antes de terminar de dizer o meu sobrenome. Seu queixo estava tremendo e achei que os dentes batiam (…).

“A surpresa e o desgosto que me assaltaram foram tão grandes que senti náuseas no elevador e, no banheiro do corredor, vomitei. Com quem ela estava? Continuaria morando em Paris com o amante? Um pensamento me acompanhou nos dias seguintes: aquele fim de semana que ela me deu de presente fora uma despedida(…).

“Graças à rotina do trabalho da Unesco, fui saindo pouco a pouco da crise em que o desaparecimento da ex-chilenita, ex-guerriheira, ex-madame Arnoux me deixara. Como se chamaria agora? Que personalidade, que nome, que história havia adotado nessa nova etapa de sua vida. (…) Ela me avisara claramente naquela última manhã. ‘Eu só ficaria para sempre com um homem que fosse muito rico e poderoso.’ Com toda certeza, dessa vez eu não a veria nunca mais. Você precisa se levantar e esquecer essa peruanita de mil caras, pensar que ela não passou de um pesadelo, bom menino.”

Quatro anos voaram e o imponderável ponderavelmente se apresentou.

“(…) assim que entramos na suntuosa mansão do signor Ariosti, senti que minha garganta ficava seca de repente e doíam as unhas das mãos e dos pés. Lá estava ela, a menos de dez metros, sentada no braço de um sofá com uma taça na mão. Olhou para mim como se nunca me tivesse visto na vida. Antes que eu pudesse lhe dirigir a palavra ou me aproximar para beijar seu rosto, estendeu uma mão desinteressada e me cumprimentou em inglês como um perfeito estrangeiro: ‘How do you do?’. E, sem me dar tempo de responder, virou as costas e mergulhou de novo no bate-papo com as pessoas que estavam à sua volta.

“(…) Não havia mudado muito naqueles quatro anos. Tinha o mesmo porte esbelto, bem formado, com cintura estreita, pernas magrinhas mas bem torneadas e tornozelos finos e quebradiços de boneca. Parecia mais segura de si mesma e mais desembaraçada que antes, e balançava a cabeça ao final de cada frase com uma displicência estudada (…). Divisei uma aliança no anular de sua mão esquerda, à maneira protestante. Teria se convertido na religião anglicana também? Mr Richardson, a quem Juan me apresentou na sala contígua, era um sessentão exuberante, com uma camisa amarelo-elétrico e um lenço da mesma cor que se derramava sobre seu elegantíssimo terno azul. Ébrio e eufórico, contava piadas sobre suas aventuras no Japão que divertiam muito o círculo de convidados que o rodeava (…). Juan me contou que ele era um homem muito rico e passava parte do ano fazendo negócios na Ásia, mas que o centro de sua vida era a paixão aristocrática por excelência: os cavalos.

“(…) Apesar dos meus esforços, não consegui trocar uma palavra com Mrs. Richardison no decorrer daquela longa noite. Cada vez que, mantendo as aparências, eu me aproximava dela, imediatamente se afastava com o pretexto de cumprimentar alguém, ir ao bufê ou ao bar, ou então começava a cochichar com uma amiga.”

A agonia continuava, passam-se mais alguns anos, a Menina má liga nesse interregno para o Ricardo, o antigo amante ainda na sua Paris incooptável, mas nem cogita de encontrá-lo, desalentando nosso protagonista, já então envolvido num diálogo com colega seu nestes termos.

“Estávamos tomando cerveja num bistrô da avenue Sufren depois de um dia de trabalho na Unesco (…). Eu, num impulso confidencial, acabava de lhe contar, sem detalhes nem nomes, que estava apaixonado havia muitos anos por uma mulher que aparecia e desaparecia da minha vida como um fogo-fátuo, incendiando-a de felicidade durante curtos períodos e depois deixando-a seca, estéril, vacinada contra qualquer outro entusiasmo ou amor.

“- Pois se apaixonar é um erro -sentenciou Salomón Toledano (…). A mulher tem de ser apanhada pelo cabelo, dominada e jogada no colchão. Precisa ver todas as estrelas do firmamento num piscar de olhos. Esta é a teoria correta. Eu não posso praticá-la, por causa da minha fraqueza física, hélas. Uma vez tentei bancar o machão com uma fêmea brava e ela me amassou a cara com um bofetão. Por isso, apesar da minha tese eu trato as damas, principalmente as rameiras, como verdadeiras rainhas.”

Até aqui, a Menina má já houvera despejado o francês (…..), o inglês do haras já se encontrava na rampa do pirata (acabou de ser lançado ao mar) e a volúvel se inseria na vida de misterioso japonês, personagem que bem poderia haver saído dum filme de James Bond, integrante da turma dos grandes bandidos antagonistas do espião a serviço de Sua Majestade. E em Tokyo, depois de alguns telefonemas trocados, a Menina má, apelidada pelas novas amizades orientais de Kuriko, vai ao encontro do tradutor ainda, e para sempre, apaixonado, tendo de ouvir dela que não tinha amor pelo Fukuda (o nome do Dr. No), senão que uma doença, um vício, possuída demoniacamente por aquele neomarido que lhe houvera confessado que dormia com diferentes mulheres . Aguardemos mais incursões da Niña mala. Vai começar tudo de novo (“Nós íamos conversar, mais uma vez eu me renderia ao poder que ela sempre teve sobre mim, viveríamos um breve e falso idílio, eu criaria todo tipo de ilusões e, na hora menos esperada, ela ia desaparecer e eu, machucado e zonzo, ficaria lambendo minhas feridas…”), o que nos obriga a saltar dezenas de páginas e nos aproximar do final do livro, um pecado porque iremos abdicar da literatura do Mario Vargas Llosa, tendo contudo o benefício de não mais deparar com trechos interpostos por este blogueiro presunçoso.

Não sem antes anotar que, diversamente dos bicudos dados pela Menina má em seus maridos e consoante aventado por um dos personagens amigos do Ricardo tradutor, o Japa a dispensara “depois que foi presa pela polícia de Lagos, numa de suas viagens à África para ajudá-lo nos seus tráficos. E que a estupraram. Que pegou chato e um cancro. E que, depois, num hospital de última categoria, quase acabam com ela. Pode ser verdade. Pode ser mentira. Não sei. Diz que Fukuda a largou por medo de que a Interpol a tivesse fichado e os negros, lhe transmitido Aids”.

Daí me ocorrer a frase empregada pelo grande ator brasileiro Flávio Migliaccio antes de suicidar-se: “Daqui para frente, só piora.” Do ataque à própria vida, provocado por mais uma separação da Arlette, o Ricardito, cinquentão, salvou-se mercê da atitude firme de um mendigo que o impedira de se jogar de uma ponte parisiense. Desde então, os dois vieram a se casar formalmente para livrá-la de complicações na França, certo que depois disso, ainda com a saúde frágil, ela se foi mais uma vez dizendo que não iria pedir nada do que tinha direito pela condição de ex-mulher. No seu último e derradeiro retorno, foi morrer após transcorridos trinta e sete dias, “durante os quais se comportou como uma esposa modelo. Pelo menos, enquanto as dores terríveis não a mantinham na cama, sedada com morfina”.

Finaliza-se a história com as palavras da enferma outrora evadida:

“(…)  você sempre quis ser escritor, e nunca teve coragem. Agora que vai ficar sozinho, pode aproveitar, assim esquece a saudade. Pelo menos, confesse que lhe dei um bom material para escrever um romance. Não foi, bom menino?”

#Vladimir Safatle
#Travessuras da menina má
#Mario Vargas Llosa

31/01/2022
(345)
mmsmarcos1953@hotmail.com

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