Memórias/Memorialistas (LXXV)

O chicote refina um autor. O elogio fácil alimenta nele a crença infundada na sua própria excelência.
_João Pereira Coutinho_

sofrência do pobre cavalo logo vai se extinguir. Basta atravessarmos as derradeiras passagens do capítulo do livro sobre o qual vínhamos nos debruçando. Recrudescem os ataques ao bicho, a intensificar angústia em quem, pela via da letras, assiste a uma fita retratando o cotidiano numa fazenda, onde a brutalidade não é vista como tal, antes se apresenta como mera atividade laboral, por isso mesmo praxe tida por legítima e indispensável à geração de renda em benefício de seus proprietários.

“– Vê se o lático tá apertando bem.

– Tá que tá partindo o bruto pelo meio, respondeu o mulato, agachando-se com um receio cômico de algum coice.

– Bão, agora encomprida um cadiquinho o lóro.

“Num minuto o Bernardo abaixara, de alguns furos, o estribo.

– Então firma aqui no barbicacho que eu vô muntá. E ajustou em rolo o laço com a mão.

“Bernardino firmou fortemente no barbicacho, com as duas mãos. O caboclo firmou as rédeas bem esticadas na clina do animal, meteu agilmente o pé esquerdo no estribo do mesmo lado, a destra presa ao santoantonio, atirou-se num prisco montado sobre o lombilho ao mesmo tempo em que dava o sinal:

– Larga!

“E lá de cima fez um corisco do rabo-de-tatu sobre o pescoço da cavalgadura.”

            A vontade era encerrar nesse trecho ora reproduzido. Infelizmente não é cabível sonegar o arremate, boicotar eventuais leitores e leitoras do “roteiro” escrito pelo Paulo Duarte e pronto para ser entregue à indústria cinematográfica – quanto mais não seja, para arrefecer o sadismo dos homens na liça com os equinos utilizados (e explorados) na zona rural. O filme de suspense provoca palpitações; o de terror, pânico e medo; o de amor, “braços que se abraçam, bocas que murmuram”; o de que ora nos ocupamos, revolta e certa indignação com nossa secular passividade.

“O animal, a princípio, como se julgasse livre, deu alguns passos hesitantes, sentindo depois a pressão das rédeas sobre o queixo, pareceu compreender a situação e, num último esforço de revolta, reunindo toda a energia ainda existente, nos músculos cansados e doloridos, doidamente, freneticamente, possuído de um titânico acesso de cólera, num contínuo ranger de arreios, desandou aos pinotes e corcovos brutais, capazes de arremessarem para longe o que lhe estivesse sobre o dorso machucado. Mas os arreios eram fortes e o cavaleiro traquejado. Como se fora parte do animal, virado centauro, nada conseguia despregar um de cima do outro. As pontas dos pés mal enfiadas nos estribos, os calcanhares comprimiam-se da barriga do poldro como uma sucuri enroscada a uma presa forte, aos poucos sufocada por aquele abraço inexorável.

“Puxando com a mão a rédea direita desse lado, o caboclo, que parecia transfigurado pela luta, fez dobrar para a mesma banda o rijo pescoço do animal, cuja boca já quase encostava à cabeça do arreio. Esta manobra evitou que fossem de encontro à cerca ambos, cavaleiro e cavalo, tigre e leão, Heracles e Anteu.  

“Virando-se em sentido contrário devido à tirania da rédea, o animal, em dois saltos, estava no meio do curral. Nisto, firmando em falso uma das patas dianteiras, o cavalo afocinha-se e vai com a boca sangrenta de encontro ao chão, mas, no mesmo instante, com um soco brusco na rédea, o peão fá-lo firmar-se de novo e, devido à pressão para trás, como a arrebentar a maxila, atira para este lado o corpo em um boleio terrível, o que inevitavelmente causaria a queda, de costas, do cavalo esmagando o cavaleiro, se não fora a estupenda agilidade deste, bambeando as rédeas com uma mão, enquanto com a outra, aplicava uma chicotada no cavalo, o qual arremessou instintivamente todo o peso do corpo para a frente.”

Meu cansaço é inquestionável, vontade de acabar esta reportagem do Selva Oscura sem mais protelações. Há de toda maneira que tirar o cavalo dessa insuspeitada areia movediça, no fundo da qual homens inconscientemente sádicos perfuram os órgãos do animal de sorte a enfraquecê-lo, trazê-lo cada vez mais para baixo, ar a princípio rarefeito e ao depois inexistente, o que o matará.

“A luta ia findar. O animal esgotado de forças, exausto, já não pulava. Com os olhos a saltar das órbitas, a boca coberta de uma espuma de sangue, aberta, dorida pela pressão do barbicacho, o corpo todo a tremer nervosamente, o pelo do pescoço e das ancas listrado pelo chicote, o cavalo vencido e altivo, sublime como uma perobeira aberta pelo raio, ainda mais realçado pelo ouro do sol da manhã que o resplandecia, não diminuiu o seu donaire com os passos trôpegos e desordenados que dava sobre o solo revolvido do curral.

“E o cavaleiro, suado, vermelho, a respiração ruidosa pelo cansaço, ria um esgar de triunfo e maldade, cheio do prazer feroz que devia sentir, nas velhas guerras, o bárbaro vencedor, com um pé sobre o peito do inimigo abatido.

“Talvez, no entanto, aquele homem emagrecido pela fome e pelas humilhações que os outros homens reservam aos miseráveis, transferisse para o cavalo subjugado todo o seu ódio a uma sociedade que nem podia compreender sua audácia e o seu orgulho de hércules sertanejo.”

Feliz 2022.

#Paulo Duarte
#Selva oscura
#João Pereira Coutinho

29/12/2021
(344)
mmsmarcos1953@hotmail.com

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