Prezado amigo Afonsinho

Sem termos acesso à linguagem do passado, viveremos literalmente na inconsciência. Até acordarmos um dia e, como o personagem Winston, sentirmos apenas a memória difusa e ancestral de que houve um tempo de liberdade em que as coisas eram diferentes.
– João Pereira Coutinho –

Vênia pelo gilgilbertiano prezado, não conheço você pessoalmente, ainda por cima (ainda por baixo) sou vascaíno, nunca fui à rua Bariri, no bairro suburbano de Olaria, o mesmo nome do time, entre outros, cuja camisa você valorizou e honrou. É fake afetar confianças, Paquetá é ilha não visitada por este modesto blogueiro, carioca de nascença – evadido da Guanabara, candango transmutado no Planalto Central.

Nas minhas décadas de pseudoentendido em futebol, quando o assunto no bar (quase não bebo) girava em torno do rude esporte bretão (há mais dois temas, né?) lá ia eu defender minha tese: chutar com o esquerdo e chutar com o direito milhares de jogadores o conseguem, às vezes até com idêntica potência e precisão no chute. Quero ver é conduzir a bola, jogar com os dois pés. Nesse passo (sem trocadilho) a plateia de bebuns fez cara de paisagem, sem que qualquer um revelasse, admitisse não saber do que se tratava – quem frequenta pé sujo se acha onisciente e infalível.

Jogar com os dois pés é acacianamente um pé emular o outro, o que o pé direito faz o pé esquerdo também faz, e vice-versa. Somente três jogadores no Brasil foram capazes de tal proeza, cracaços a seu tempo. Retroagindo: Ronaldo Fenômeno, Leandro e… Afonsinho. Véspera do jogo, plantel ainda no vestiário, pode perfeitamente o técnico chegar para qualquer dos três e dar o comando: jogue o primeiro tempo exclusivamente com o pé esquerdo; no segundo tempo, utilize apenas o pé direito. Pronto, nos primeiros quarenta e cinco minutos, o comandado faz tudo com a canhota, tudo mesmo, dribla, lança de trivela, chuta com o peito do pé, bate corner e faz gol de letra. No segundo tempo, tudo igualzinho, dessa feita se valendo apenas do pé direito. E cada um dos pisantes termina sua empreitada muito bem, bola de ouro.

Afonsinho, grande médico, nosso artista das quatro linhas que abomina desvarios inconstitucionais, lutou na Justiça e conquistou o direito ao passe livre – verdadeira abolição da escravatura imposta pelos clubes -, deveria em consequência ser permanentemente homenageado por todo o mundo do futebol.

Mas eu gostaria de falar agora de alvinegro, de branco e preto, nada de Botafogo de Futebol e Regatas, senão que de linguagem, de desconstrução da linguagem..

No seu artigo da última Carta Capital, intitulado Dicionário paraolímpico, você evoca matéria jornalística de Bruna Campos e de Gabi Lo aduzindo que

“(…) as duas entrevistaram destacados atletas brasileiros da Paralimpíada e os colocaram para falar sobre o preconceito ‘estrutural’, que pode ser visto, inclusive, na linguagem que a mídia utiliza para se referir aos atletas com deficiência.

“E o resultado da reportagem é espetacular. Todos os esportistas abordam o assunto com tranquilidade, embora com veemência, e desmontam, pedra por pedra, o universo simbólico da linguagem do preconceito. O movimento está em sintonia com todos os demais processos de desconstrução da linguagem, digam eles respeito ao machismo, ao racismo ou à homofobia. Tem sentido, neste caso, a sabedoria popular que costuma dizer que ‘a palavra tem força”.

Contrito, dá sequência ao seu articulado.

Daniel Dias / foto: agenciabrasil.ebc.com.br

“Muito incomodado com as expressões usadas para falar sobre as pessoas com deficiência – essa palavra ainda me incomoda –, arrisquei, na semana que passou, recorrer ao termo “especial”. Achei que fosse uma boa opção. Mas caí do cavalo. Fui logo de cara derrubado pelo nadador Daniel Dias, o recordista de medalhas entre os atletas paralímpicos brasileiros. Daniel me ensinou, em sua fala, que essa é uma palavra inadequada.

“Já o judoca Antônio Tenório estabeleceu, na entrevista, a diferença entre doença e deficiência. Tenório também fez questão de ressaltar que não devemos usar, jamais, expressões como “(fulano) sofre disso, padece daquilo”. Ninguém é coitadinho, ele bem sabe. Sempre tive em conta que dó – ou pena – é um dos piores, se não o pior, sentimento que podemos carregar.

“Bastante firme e enfática, Raíssa Machado, prata no lançamento de dardo, abordou o uso de uma expressão comum, adotada na tentativa, talvez, de suavizar o tratamento “pessoa portadora de deficiência”. Raíssa entrou de sola. Ela disse que ninguém porta uma deficiência. “Você porta um objeto, uma coisa qualquer, a deficiência existe e não é preciso esconder”, ensinou, antes de arrematar com uma pergunta. ‘O que vem antes? A deficiência ou a pessoa? A pessoa.’

“Sua leitura pode ser estendida a outras expressões de natureza semelhante, como “pessoas com necessidades especiais”. É tudo eufemismo. Os atletas paralímpicos adotam, pura e simplesmente, o termo ‘pessoas com deficiência’”.

É aqui que o prezado colega Afonsinho (notem que fiquei menos enxerido, rebaixado de amigo para colega) namora linguagem politicamente incorreta sem o perceber. Assertivo e doutrinado, declara:

Claro e simples, como deve ser a vida.

E recalcitra:

o nadador Phelipe Rodrigues ajudou a esclarecer o sentido da nova palavra ‘capacista’. O sentido que ela carrega, explica Rodrigues, não é nada bom, uma vez que, indiretamente, passa a imagem de que as pessoas com deficiência são menos capazes. A brilhante Edenia Garcia, sua companheira de piscinas, arrematou: ‘Não é só isso, vamos além. Eu também sou capacista em desconstrução’”.

Negritei (racismo) as duas palavras.

Pois é ali, no “Claro” e no “esclarecer” que mora o pecado (in)voluntário. Afirmo isso porque apanhei, e muito, por haver usado expressões que, eu não avaliava, constituíam racismo, na medida em que fica mais compreensível quando tudo se torna claro, quando tudo é esclarecido e se põe termo à escuridão. Meu procedimento nunca foi doloso, a partir todavia desse ponto desconstruí, abandonei tais maneiras de referenciar e passei a me valer do termo elucidar.

Torço para que você deixe uma cópia desta postagem no seu criado-mudo. Ou melhor, na sua mesinha de cabeceira.

#Afonsinho
#Paralimpíada
#João Pereira Coutinho

19/09/2021
(338)
mmsmarcos1953@hotmail.com

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