Memórias/Memorialistas (LXX)

Ao contrário do ofício do ator e do músico, o trabalho do escritor se dá em dois tempos: o momento da escrita, quando estamos sozinhos com nossos personagens, ideias e angústias, e o momento em que as histórias chegam ao leitor e se completam, fechando um ciclo.
– Raphael Montes –

Foram inúmeras e justas as matérias difundidas na imprensa sobre o passamento do Tarcísio Meira, padecente de comorbidades que se aliaram à Covid-19 para, enfim (é o fim?), afastá-lo da Gloria Menezes. Em todas as pautas, sobressaíram as referências às performances do ator na pele de Um certo capitão Rodrigo – Rodrigo Cambará e a parceira Bibiana (ela dizia: ser boazinha é fácil, quase todo mundo o é; difícil é ser má), casal protagonista duma história encartada no O Tempo e o Vento mas que assumiu status de criação autônoma e independente.

https://blogdoschiavoni.wordpress.com/2009/12/04/o-tempo-e-o-vento/

Pois bem. Como soltar o Erico Veríssimo deste blog, iniciadas as respectivas postagens em agosto de 2020?

Sem nenhum talento para o palco, cofundei o Teatro Mapati no longínquo 1991, tendo convivido nesses trinta anos com centenas de artistas das artes cênicas, prova de que não se aprende por osmose a ser ator e atriz. Não obstante, enceno despedida do pai do Luiz Fernando Veríssimo – largo na mesinha, lido, relido, ouvido e reouvido o Solo de Clarineta, primeiro volume de suas memórias.

Transcorridos uns instantes, já sofrendo as dores da abstinência, o canastrão aqui negaceia, revoga sua decisão e por consequência se deixa seduzir pela audiência do volume 2 do Solo de Clarineta

Caminhando sozinho aquela noite pela praia deserta, fiz algumas reflexões sobre a morte. Desde que completara cinquenta anos eu começara a pensar com mais frequência – mas não obsessivamente – na possibilidade de cessar de ser, dum segundo para outro.

“Havia menos de duas horas carregara nos braços um cadáver (era de um vizinho do escritor gaúcho, enfarte fulminante). Aqueles pés brancos e frios pareciam conter uma terrível advertência.

“Parei diante do mar. As ondas rolavam para a praia, soltando um gemido que parecia vir ameaçador das profundezas, mas que acabava desfeito em suspiros de espumas sobre as areias. No céu sem lua as estrelas cintilavam. O vento do largo me batia, morno, na cara.”

Nos monumentais tomos de O Tempo e o Vento (O Continente 1 e 2; O Retrato 1 e 2 e O Arquipélago 1, 2 e 3), o título da obra ficcional já indica, além do transcurso do tempo, o ar em movimento. Com efeito, pairando nos sete livros, uma locomotiva épica a puxar seis vagões, assinala-se… o vento. Sinistro. Prenúncio de aflições, intempéries, desgraças.

De volta às divagações do Erico memorialista:

“Seguindo um hábito que me vem da infância, comecei a conversar comigo mesmo em voz alta. Vieram-me à mente trechos dum livro do teólogo existencialista Paul Tilich, que eu acabara de ler. Meu intelecto então começou a doutrinar o corpo.

‘É necessário que te convenças de que o não-ser é parte do nosso próprio ser. O não-ser depende do ser que ele nega. Deste modo, meu amigo, o ser tem uma prioridade ontológica sobre o não-ser. Não poderia haver negação se não houvesse uma afirmação precedente a ser negada.’

“Meu coração escutava, sem comprometer-se. No alto de um dos três rochedos de basalto, ao longo da praia, o pequeno farol cumpria o seu dever, mandando de instante a instante uma mensagem luminosa aos navegantes da noite.

“Repeti uma frase de Tillich: O ser é a negação da noite primordial do nada. E meu corpo quis saber como era essa noite. Expliquei que se trata de algo impossível de verbalizar.

Era terapêutico findar aqui, ninguém nesta pandemia anda muito forte para encarar crises existencialistas. Mesmo as superstições, botafoguenses ou não, devem ser canceladas nos moldes do que ocorre na internet. Porém, estamos perante Erico Veríssimo, impensável dispensar companhia tão erudita.

“Continuei a caminhar pela beira do mar, pisando em conchas, algas e medusas. ‘Mas quem ganha a batalha final é o nada’ – queixou-se o meu corpo. Sacudi a cabeça negativamente. ‘Há um limite para essa vitória. Se sentimos o não ser como um vencedor, o ato de sentir pressupõe o ser!’

“Mas era melhor pensar em coisas positivas. Dentro de menos de dois meses Mafalda e eu ganharíamos nosso primeiro neto. Essa idéia me encheu o peito duma doce alegria, espantando de minha cabeça os pensamentos de morte.

“Um caranguejo da areia, renda clara e móvel na praia morena, passou na minha frente, rumo dos cômoros. Encaminhei-me para o automóvel, sentei-me atrás do volante e pus o motor em movimento. Meus pés sentiram um corpo estranho perto do acelerador. Acendi a luz para ver do que se tratava. Eram as chinelas do defunto.”

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31/08/2021
(337)
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