Fausto e Valter Embaixador

Os rituais de passagem do tempo são momentos de luto ou de arrependimento pelo que se foi e, simultaneamente, tempos de previsão e de esperança.
– Roberto da Matta –

Desconheço se existem estatísticas sobre o número de retrovisores laterais que, como uma modalidade de vingança (justa ou não), os motoboys paulistas quebram diariamente ao ultrapassar carros nas marginais Tietê e Pinheiros. Tudo indica que tais levantamentos, se porventura um dia feitos, restaram abandonados, não mais haveria ocorrência dessa natureza, já porque o trânsito mudou para melhor devido ao atual número reduzido de veículos (olha aí, gente, o rodízio radical, par/ímpar), já porque merecidamente os condutores de motoca (essa é nova), pelotão de entrega das mercadorias as mais variadas, passaram a ser reconhecidos pela sociedade como profissionais imprescindíveis, quase heróis pelo risco de exposição acentuada ao vírus nesta época de isolamento.

Por outra parte, queria trazer para a pista (sem trocadilho) uma outra categoria de usuários de motocicletas. Não são os (há mulheres também) pilotos de rali nem os de provas oficiais. Trata-se daqueles que ocupariam, por assim dizer, uma zona intermediária: os motociclistas (experimente chamá-los de motoqueiros) que ostentam máquinas superpotentes, valiosíssimas, e saem sozinhos ou em conjunto por aí, pelas rodovias deste país continental, em velocidades inimagináveis.

Destaco dois personagens.

O primeiro.

Meu último notebook (sou das antigas, ainda uso isso), com auxílio luxuoso de um HD externo, possui fotos inúmeras e centenas de milhares de e-mails que expedi e recebi ao longo de quase vinte anos, coisa de 70.000 (setenta mil) mensagens ou mais. Claro que o atual equipamento herdou, dos anteriores da espécie que tive, boa parte desses arquivos e gerou seu próprio conteúdo. Para se ter ideia do quanto esses recados eletrônicos do início da fila remontam a datas pretéritas, numa tarde preguiçosa eu estava dando uma olhada nalguns deles e resolvi separar um que a Aline me enviara. Bradava ela: “Vô, meu pai não quer deixar eu entrar no MSN.”  Idade da menina quando lavrara o protesto? Respondo: 9 anos. Neste 2020, essa minha neta, a mais velha, se encaminha para os 24 anos bem vividos.

O acervo é muito precioso para mim. Pesco de quando em vez uma relíquia dessas e reencaminho para quem em tempo remoto ma endereçou. De início o(a) destinatário(a) se confessa surpreso(a) e depois geralmente agradece a recordação.

Sucede que num mau dia o note da penúltima linha sucessória deu pau, apagou-se tudo, os “médicos” o desenganaram. Entrei em pânico. Que durou até eu conhecer (por indicação da Dazi Antunes Corrêa, a poeta paulista desgarrada aludida no fim da postagem anterior) um cara muito especial, dono de uma loja de venda e reparo de computadores funcionando havia mais de década na SQN 212. O Fausto Teixeira aceitara prontamente o desafio do conserto improvável assegurando que o equipamento iria renascer das cinzas, através de um tratamento alongado como aquelas prisões em Curitiba. Por força disso, passei a frequentar a “oficina” que eu até então não conhecia apesar de ter morado cinco anos na pacata e bucólica superquadra. Estabeleci um tipo de amizade com aquele homem, um workaholic, simpaticíssimo, carismático, falava sem intervalos em dois celulares ao mesmo tempo – sem deixar de concomitantemente atender com máxima eficiência à clientela fiel espalhada pelas cadeiras da “sala de estar”.

Num mau dia, péssimo dia, trágico dia de 2019, fico sabendo que meu neoamigo, rei dos computadores, otimismo incontido, falecera num acidente de moto.

O segundo personagem.

Mudei em novembro de 2016 para Águas Claras, um quarto e sala e varanda no décimo andar, com vista espetacular. Até que, dois anos depois, o síndico determinou expressamente que eu deveria esquecer minha vida de solteiríssimo e transferir minha residência para um outro ap no mesmo prédio. Sou obediente e me apressei em cumprir a ordem superior. Qual não foi meu espanto ao constatar que o imóvel, situado no décimo terceiro andar, vista mais espetacular ainda, se encontrava ocupado pela proprietária, de nome Keila, com quem estou vivendo desde 2018, ambos no entanto sem aliança no dedo e decididos a não ter filhos que isso é para moços e moças.

Entrementes, eu nos preparativos para entregar o ap do décimo andar ao dono quando recebo a visita de morador de um ap do décimo primeiro andar, onde ele morava de aluguel e o qual tinha de ser desocupado em prazo insuficiente para que ele ultimasse a compra (então em processamento)  de outro ap de igual sorte no mesmo prédio. O interesse dele portanto era o de morar, por alguns meses, no imóvel que eu estava deixando, mantido formalmente o meu contrato, eu locatário de direito, ele locatário de fato. Tendo em mente que eu subsistiria responsável pela locação, fui desaconselhado por todo mundo, inclusive a imobiliária, para não fazê-lo. A princípio, todos e todas tinham razão. Mas meus conselheiros e conselheiras não conheciam pessoalmente o Marcelo (e sua esposa), um ser íntegro, honesto, que na fase de locatário (de fato) nunca viria a atrasar pagamentos quaisquer relacionados com o bem, alguns compromissos ele os saldara antes da data dos respectivos vencimentos.

Está confuso, tentemos sintetizar a ciranda em nosso bloco residencial a envolver quatro apartamentos:

1101 – apartamento onde o Marcelo morava e teve de entregar;

1008 – apartamento do Marcos solteiro, repassado por uma temporada ao Marcelo;

1307 – apartamento do Marcos casado, de propriedade da Keila (a propriedade dela é o ap, não o Marcos; ou seriam as duas hipóteses?)

106   – apartamento comprado pelo Marcelo, onde ele e a esposa estão morando felizes há mais de ano e agora com um lindo filhinho.

Descrevo toda essa cadeia negocial e afetiva para enfim demonstrar forte vínculo que eu ignorava.

Final do mês passado, eu e Keila adentrávamos a portaria de nosso prédio quando encontramos o Marcelo, semblante triste. Nosso  amigo – que em agradecimento a mim,  mas com uma ponta de simpático deboche, passara a me chamar de papito – nos disse que o irmão dele houvera falecido em meados de abril… em acidente de moto. Para além da tristeza absoluta, meus pêsames, meus sentimentos, o casal tomou conhecimento de que o Valter e o Fausto eram amigos, de um frequentar a casa do outro. Os dois eram batalhadores, ralaram e mercê do trabalho diuturno foram melhorando de vida, a ponto de terem caras e potentíssimas motos e integrarem grupo de amigos adeptos do motociclismo que percorriam habitualmente grandes distâncias; era costume deles ir ao Jerivá (a mais de cem quilômetros da Capital Federal) somente para tomar um café confraternizador, sendo que em algumas datas eles iam a essa tradicional lanchonete goiana à beira da estrada e voltavam a Brasília por duas vezes no mesmo dia.

(Fausto, à esquerda, e Valter)

Exemplar o recado do Valter Embaixador (esse o apelido do irmão do Marcelo) em homenagem ao amigo Fausto, que tinha deixado este mundo numa curva da BR 60, ligação entre o DF e Goiânia. E sobretudo tocante pois no seu depoimento o Valter não deixou de prefigurar a própria despedida, na medida em que gravado uma semana antes de sua morte, na mesma rodovia, na curva seguinte àquela na qual meses antes sucumbira o amigo Fausto, os dois em distintas viagens e durante as quais desenvolveram em suas motos velocidade máxima estonteante, cerca de 300 quilômetros por hora.

Saliente-se, por fim, que o Marcelo, irmão do Embaixador, vinha há tempos cogitando fundar com a mulher do Fausto uma Ong destinada a divulgar campanhas de prevenção de acidentes no motociclismo. Porém, impotente para dar prosseguimento ao trabalho do marido na loja da SQN 212 e continuar a residir na ampla casa do Gama que ela e o Fausto dividiram por tantos anos, a viúva foi embora de Brasília levando sua saudade para Maceió.

Voz de Walter Embaixador

#Roberto da Matta
#Motociclismo
#Jerivá
#BR 60

18/05/2020
(313)
mmsmarcos1953@hotmail.com

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