Obsessões musicais (XXII)

                                                                                                              Quem se cansa de andar encurta a vida; quem prossegue, afasta a morte para depois.
Maria Zina – Apud Mario Sergio Conti

Pré-adolescência minha, em Brasília, a gente (a gente, aí, quer dizer nós) debaixo do bloco, cansadíssimos de fazer nada, somente na bestagem, assim como hoje na idiotia do celular. Adensávamos o ócio não criativo com papos os mais estapafúrdios. Um dos temas recorrentes era jogar na roda do debate o que seria pior para o ser humano em termos de desgraça absoluta: o indivíduo nascer/ficar surdo, mudo, cego, sem paladar, sem tato.

Aquela criançada pequeno burguesa não tinha sido ainda apresentada ao politicamente correto, o vocabulário não contemplava referência a “pessoa deficiente”, acolhida sem mais restrições para o bem de todos e todas nestes tempos viróticos . O relato de cada um (no conclave, clube do Bolinha, não havia menina) era detido, minucioso, detalhista. No seu momento cênico, o narrador, circunspecto, fazia no entanto caras e bocas para despertar na turma (galera) sensações desagradáveis e angustiantes de sorte que a pior sina fosse exatamente aquela que ele descrevia superinterpretando.

Levantamentos que fiz alcançando desde a primeira conversa dessa natureza apontam que, para os meninos candangos da Super Quadra Sul 306,  a adversidade mais grave, o fator  per se a derrubar todo o sistema sensorial, era a falta da visão, a amaurose. Ou seja: diante da ausência de luz, restavam superados em privação e desalento os demais sentidos: o não distinguir o gosto dos alimentos; a alienação total do cheirinho do cacau; a insensibilidade da pele da pessoa que não acusa o contato físico com quaisquer objetos ou com o corpo de outrem; a incapacidade de oralizar os pensamentos; e o desaperceber-se de qualquer melodia.

Desmentem e contradizem tal entendimento artistas geniais espalhados pelo mundo que são deficientes visuais de nascença ou que ao longo da vida perderam a capacidade de enxergar. Pensem na obra do escritor argentino Jorge Luis Borges (“os poetas, como os cegos, podem ver no escuro”). Mencionado o nome de um dos maiores representantes da literatura universal, debrucemo-nos no terreno da música: o porto-riquenho Jose Feliciano, o italiano Andrea Bocelli e o americano… Stevie Wonder.

De autoria desse maravilhoso instrumentista/compositor/cantor, não daria a princípio para salientar nenhuma música entre as centenas produzidas ao longo dos mais de cinquenta anos de sua carreira ainda em pleno vigor. Quase todas contam com minha admiração obsessiva, o que não é vantagem alguma. Aleatoriamente escolho “As” pela mensagem apaixonada nestes tempos de violência institucional (quando o gabinete do ódio cairá?) e pelo formidável coro de negras e negros – num esgar harmônico, um dos integrantes é convocado por Stevie Wonder para intervir em solo vocal.

Primeiramente, há que assistir ao vídeo do “Java Jazz Festival 2012:

Na sequência ao êxtase, no outro link:

O sonoro apuro técnico, a consolidação do Black & Power norteamericano, a voz masculina e tonitruante arrebata lá pelo meio desta gravação de mais de quatro décadas e, no lado de baixo do equador, nos conduz aos melhores momentos do nosso cantor negro Monsueto.

Assim como

Como em torno do sol a terra sabe que está girando
E as rosas sabem desabrochar no começo de maio
Assim como o ódio sabe que o amor é a cura
Você pode descansar sua mente
Que eu vou te amar sempre

Como o agora não pode revelar o mistério de amanhã
Mas, de passagem, vai crescer mais a cada dia
Assim como tudo que nasce é novo
Você sabe que o que eu digo é verdade
Que eu vou te amar sempre

(Até o arco-íris queimar as estrelas no céu)
Sempre
(Até o oceano cobrir cada alta montanha)
Sempre
(Até o golfinho voar e papagaios viverem no mar)
Sempre
(Até que o sonho da vida e a vida se tornam um sonho)

Você sabia que o amor verdadeiro não pede nada
Não, não, sua aceitação é a maneira como nós pagamos
Você sabia que a vida deu uma garantia de amor
Para durar pela eternidade e um dia

Assim como o tempo soube seguir em frente desde o início
E as estações sabem exatamente quando mudar
Assim como a bondade não conhece vergonha
Saiba através de toda a sua alegria e dor
Que eu vou te amar sempre

Como hoje eu sei que estou vivendo
Mas amanhã pode me fazer o passado
Mas isso eu não devo temer
Pois eu sei que no fundo da minha mente
O amor que deixei para trás
Porque eu vou te amar sempre

(Até o dia seja noite e a noite se torne o dia)
Sempre
(Até as árvores e mares apenas voarem)
Sempre
(Até o dia em que oito vezes oito vezes oito é quatro)
Sempre
(Até o dia que o dia não exista mais)
Sabia que você é amado por alguém
(Até o dia que a terra começar a girar da direita pra esquerda)
Sempre
(Até que a terra apenas para o sol se negar)
Eu estarei amando você para sempre
(Até a mãe natureza dizer que seu trabalho acabou)
Sempre
(Até o dia em que você for eu e eu for você)
Sempre
(Até o arco-íris queimar as estrelas no céu
Até o oceano separar cada alta montanha)
Sempre

Nós todos sabemos que às vezes a vida é ódio e problemas
E pode fazer você querer ter nascido em outro tempo e espaço
Mas você pode apostar as suas vidas e que o dobro é o dobro
Que Deus sabia exatamente onde ele queria que você fosse colocado
Portanto, verifique se quando você diz que está nele, mas não dele
Você não está ajudando a tornar esta terra
Um lugar às vezes chamado de inferno
Transforme as suas palavras em verdades
E depois transforme essa verdade em amor
E talvez os netos dos nossos filhos
E seus bisnetos dirão
Eu estarei te amando até o arco-íris queimar as estrelas no céu

# https://pt.wikipedia.org/wiki/Stevie_Wonder
# As Live at Java Jazz Festival 2012
#Jorge Luis Borges

19/03/2020
(309)
mmsmarcos1953@hotmail.com

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