Memórias/Memorialistas (III)

Há cerca de duas semanas, a seção (era caderno) Pensar do Correio Braziliense estampava matéria na qual um mestrando em Letras (se não me engano) reportava visita que, depois de intrincado e lacunoso telefonema, conseguira fazer ao recolhido Raduan Nassar, da turma dos inacessíveis, geniais escritores – Rubem Fonseca e Dalton Trevisan, por exemplo.

Do relato do estudante, desprendia-se entusiasmo. Confesso que não senti inveja (nem da boa. Existe isso?) nem me apequenei (como diria o falecido Sergio Motta, que embarcou com a mesma e pavorosa doença que levou meu pai – enfisema pulmonar). Antes, senti verdadeiro orgulho pelo feito do menino de 25 anos pois isso evocava uma proeza minha da mesma natureza, da mesma magnitude.

O mês era janeiro e o ano, 1984. Nessa época, o nem tão menino aqui curtia a força dos 31 anos (ainda bem que sou ruim de aritmética e não sei calcular minha atual idade). Botei na cabeça que iria visitar o homem de qualquer jeito. De que maneira fazê-lo? O único traço em  comum, ele mineiro e eu filho de mineiro. Não era pouco mas não era muito. Minas tem gente, muita gente nativa espalhada por mais de 800 municípios, sem contar a mineirada que pipoca (e fofoca) por todo o país.

Reuni coragem, óleo de peroba no rosto, e embiquei (cadê o Agamenon?) na direção da Gloria. Chego ao simpático bairro carioca – relógio no poste, enviesadamente o monumento dos pracinhas (um dos heróis da Segunda Guerra, Lelio Martins de Souza, é homônimo do meu pai), o tradicional hotel (ainda é do Eike Batista?) ainda em reformas, o Catete ali atrás, o centro da Cidade Maravilhosa mais adiante. Paro defronte ao prédio do “conterrâneo”, falo com o porteiro (àquela época, abordagem direta e tranquila; hoje, impossível), que me indica o elevador (tinha porta pantográfica?).

Pouco convicto subo pelos andares daquele edifício antigo e, com certeza, nimbado de lembranças e recordações. Toco a campanhia esperando “não está”, “viajou”, “foi dar uma palestra” ou coisa parecida. Secretária abre a porta do apê, digo-lhe que desejo falar com o dono da casa. Pergunta-me educadamente quem sou. Ocorreu-me só isso: “sou um leitor”. Passado um tempinho, uma eternidade, quem assoma à porta? Ele mesmo, o grande Pedro Nava. Convidou-me a entrar. Sentamo-nos no sofá da sala e foi dada a partida.

Guardei bem, a conversa transcorreu agradabilíssima (para  mim, obviamente), da qual extraio duas passagens. Tietagem à parte, consignei que achava Baú de Ossos, Balão Cativo,Chão de Ferro, Beira-Mar, Galo-das-Trevas  livros superiores em boa parte ao Em busca do tempo perdido e aos seis tomos que o seguiram, obra fantástica. Fui severamente repreendido. Com honestidade intelectual, o anfitrião me deu um sacode, “Proust é insuperável”. Sinceramente, num “duelo” entre os dois virtuoses, dá empate. Recuperado da chinelada, indaguei ao poeta, ao maior memorialista brasileiro, se, ao tempo em que o médico de tudo e de todos ia vivendo os fatos, os episódios, os descaminhos, a mente dele já não ia “catalogando e lavrando” as memórias, como num documentário pari passu. O simpático velhinho do clube dos octogenários: “Não, de jeito nenhum”.

PedroNava_post14

Cinco meses depois desse emocionante (para mim, repito) encontro, debaixo de uma árvore próxima a esse prédio dos anos 1950, para tristeza dos amigos, das amigas, da turma das letras, dos milhares de leitores e leitoras, Pedro Nava enfia cirurgicamente um balaço na cabeça e “sai da vida para entrar na história”.

 

16 de outubro de 2013

(014)

mmsmarcos1953@hotmail.com

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