Memórias/Memorialistas LXXVI

O tempo é uma invenção do homem, diz meu pai (…). Eu vou além, creio que o tempo não exista, tudo ocorre em concomitância sem nos darmos conta, só percebemos o átimo presente, imensurável, e já se tornou memória, e a isto chama-se vida.
– Mino Carta –

Saudades do Veríssimo, o Luis Fernando. Difícil contar os meses nos quais não saem notícias a respeito do estado de saúde do humorista oitentão. Poderia aqui revisitar alguns trechos, alguns desenhos de sua consagrada obra do mais fino humor, mas este modestíssimo blog vem incursionando pelas memórias do pai dele.

Com efeito, a referenciação passou pelo volume um de suas memórias e já avançou no segundo (e último) tomo, o qual, à semelhança do que o antecedera, também foi batizado de “Solo de Clarineta” e veio a público, no remoto ano de 1976,  após o falecimento do Erico Veríssimo, por isso que a Editora Globo contara com a participação do professor da UFRGS Flávio Loureiro Chaves para organizar os escritos em sequência ao que o ficcionista já deixara elaborado, daí esse segundo volume haver sido dividido em duas partes, a primeira delas já impressa e revisada pelo autor travestido de memorialista.

São narrados, no volume 2 em tela, casos inúmeros vividos, como sói, pelo Erico Veríssimo; abordagens de assuntos os mais diversificados; relatos da experiência profissional em Washington do artista das letras, designado para uma diretoria na OEA; análises, de conseguinte, políticas e até sociológicas. Todavia, o que numa mirada mais detida me interessou foram as páginas sobre uma viagem à Grécia.

Memórias costumam ser não ordenadas, aleatórias, desobedientes à cronologia – são portanto jogadas no papel de forma assistemática. O gaúcho que lavrara o romance “O Senhor Embaixador”, entre dezenas de outros livros aqui assinalados em anteriores postagens dentro desse tópico de recordações, achara por bem, no momento em que iria nos falar do azul turquesa das águas circundantes às ilhas gregas, prepor sincera confissão aos seus leitores e leitoras, que, feita nos dias presentes e tratada em sua literalidade, sem mitigações, o condenaria sem dúvida ao cancelamento praticado nas redes sociais.

“Existem no homem sentimentos naturais e respeitáveis que, no entanto, quando transpostos para a dimensão da literatura, correm o risco de parecer piegas e até grotescos. Tenho uma certa má vontade para com qualquer obra de ficção – em livro, teatro ou cinema – que explore o tema do amor materno (ou paterno), o dos ‘órfãos da tempestade’ ou ainda o do cão fiel que se fina de tristeza quando a morte lhe rouba o dono. Tenho procurado descobrir honestamente a fonte dessa aversão e cheguei à conclusão de que ela está, por mais ridículo que pareça, no fato de meu superego ter escolhido para mim, como paradigma, a imagem do homem estóico e imperturbável, num contraste com o que realmente sou, isto é, um sujeito vulnerável, sensível, que se comove com facilidade não só ante os aspectos tristes ou trágicos da vida, mas também diante de qualquer expressão de beleza ou bondade. (O satirista que tenho dentro de mim não será, acaso, um agente secreto do superego?)

“A verdade é que, quanto mais velho vou ficando, tanto maior é a minha admiração pelas pessoas que têm a coragem de externar seus sentimentos, suas paixões ou aversões sem nenhum respeito humano. Numa época como a nossa, o sentimentalismo passou a ser o oitavo pecado mortal. Daí à aceitação de torturas policiais, campos de concentração e extermínio, é só um passo. Um passo que um dos países supostamente mais civilizados do mundo já deu”.

O gaúcho inunda o livro com suas anotações a propósito das belezas naturais do país mitológico, das obras de arte distribuídas em todos os cantos, dos deuses, fazendo apologia (me perdoem o trocadilho) do povo grego.

“A Grécia é um país de pequenas cidades, vilas e aldeias. Nisso e na graça idílica de certas regiões, (…), ela nos lembra Portugal: duas pequenas nações de brava gente afeita às lides do mar.

(…)

“Quanto à paisagem humana, seria injusto olhar para o primeiro grego que encontramos nas ruas de Atenas ou outra qualquer cidade do país, e compará-lo fisicamente com o Hermes de Praxíteles. Dos gregos está, por assim dizer, muito diluído. Através do tempo, das invasões e das migrações sua pureza foi comprometida por cruzas com eslavos, francos e turcos. O tipo que em nossos dias predomina na Grécia é o moreno de cabelos escuros. O grego é o homem que ama cantar e dançar. Como o calabrês e o siciliano tem um entranhado senso de hospitalidade, honra pessoal e de família. Lembra o judeu em sua paixão pela polêmica. É rico em gestos folclóricos como o mexicano. Barulhento e palrador como o latino-americano das Caraíbas, gosta de discutir mais por amor à discussão do que à verdade. Como o espanhol, freqüenta com gosto as suas tabernas, cafés, praças, parques e ruas. Como o brasileiro aprecia as anedotas, é o homem do aqui e do agora. Bravo como soldado, é o mais leal dos amigos e o mais feroz dos inimigos.

(…)

“Os gregos (…) faziam especulações em torno do mistério, através do uso lúdico da inteligência e da razão, numa atitude não só de saudável irreverência como também de curiosidade e bravura intelectuais. Foram eles os primeiros a criar um vocabulário adequado ao jogo das idéias abstratas – tudo isso sem perder o gosto pelos aspectos visíveis e plásticos do mundo. Realizando uma façanha maior e mais importante que a dos navegadores do futuro, desvendadores de novos continentes, os helenos descobriram o homem e o valor do espírito, e assim legaram à posteridade a Ciência, a Filosofia, a Literatura, a Arte, a Tragédia, o Diálogo, a Democracia, em suma, o Humanismo. E agora, enquanto contemplo as colunas do Partenon, soam-me na mente as palavras de Anaxágoras: Todas as coisas estavam no caos quando surgiu o intelecto e criou a ordem.

O relato do Erico Veríssimo viajante, de que ora me despeço tão saudoso como referi no início desta postagem, vai-se acrisolando à medida que o memorialista traz a lume as idiossincrasias da Grécia em seus primórdios – tisnando o “vidas negras importam” – de sorte a fazer sobressair na outra ponta o universalismo do povo heleno.

“É verdade que na Grécia antiga, mesmo na Era de Péricles, a escravidão era aceita como coisa natural, e que muitas vezes Atenas e Esparta empenharam-se em guerras cruéis e insensatas, sim, e que Sócrates foi condenado à morte. Mas, feitas as contas finais, que fabuloso saldo positivo essa civilização ática nos transmitiu!

Tenho uma admiração particular por Eurípedes, que foi o primeiro a mostrar que a escravidão era um mal, e que nenhum homem deve consentir em submeter-se servilmente a outro homem. Segundo esse mestre da tragédia: Escravo é aquele que não pode dizer o que pensa.

Lugar-comum? Truísmo? Ora, quando pensamos em todas as ditaduras, – civis, militares ou híbridas -, nos estados totalitários cujo nome está aumentando no mundo com um caráter quase epidêmico, temos ímpetos de, por mais óbvia que pareça a frase de Eurípedes, proclamá-la muitas e muitas vezes  a todos os ventos.

(…)

“Absolvo Clitemnestra de todos os seus pecados, não só o de adultério como também o de ter incitado seu amante Egisto a assassinar Agamênon. Porque Micenas, amigos, áspera, árida e cor de aço, é um cenário que convida à tragédia Aqui ninguém pode fugir à Fatalidade. E Clitemnestra, afinal de contas, deixada a sós pelo marido, que fora guerrear em Tróia, não devia ter muito com que ocupar o seu tempo. O resto foi obra do Destino. (Aristóteles afirmou que a tragédia nos purifica através da piedade e do temor reverente, e que os homens libertaram-se de si mesmos depois que compreenderam juntos o sofrimento universal em vida.)”

#Mino Carta
#Luis Fernando Veríssimo
#Grécia

24/02/2022
(346)
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