Kombi caliente      

Era um domingão, tinha muito sol/Meu avô na frente, minha avó atrás/
E o rádio a mil, que legal./O meu pai guiava,/Minha mãe falava,/
Minha irmã chorava,/O totó latia,/Tudo num fuscão, que legal./
Vamos indo todos,/Vamos indo juntos à praia grande,/
Levando até televisão./Era um domingão./Mas ao chegar na praia/
O tempo logo fechou./Meu avô de tanga,/Minha avó de maiô,/
Minha mãe chorava,/O totó latia, o meu pai calava,/
E no mais chovia…/
Era um domingão…/Tudo no fuscão, que legal/
E era um domingão,/que legal/Meu avô de tanga, que legal,/
O totó latia, au au au,/
E o rádio a mil, que legal,/O meu pai calava…

(Fim de Semana – Premê)

Para o bem e para o mal, geralmente para o mal, espalham que ser pobre é uma tristeza. Na opinião dos mais radicais, uma desgraça.

Aquele homem, ao que me recorde, não pensava assim. Ou então pessoa finérrima (essa é nova). Nele,  não se percebiam sinais de contrariedades por haver sido condenado a recepcionar parentes (serpentes e minhoquinhas) no final de uma malfadada noite.

Inicio minha maldade.

A pobraiada viajava pro Rio. Ou era trajeto de volta pra Brasília? Indiscutível é que aleatoria e desvinculadamente as cenas foram capturadas décadas depois por cineastas argentinos (encaixo uruguaios também?), cuja competência nós muito invejamos.

Não era calor humano – apesar da viagem com centenas e centenas de passageiros juntos e misturados, mais misturados do que juntos. Era o quentinho do xixi que, debaixo das cobertas esfarrapadas, alagava o bagageiro do pão de forma cor de Acetin que caía aos pedaços, molhando os incautos e incautas que ali tentavam dormir um pouco em meio aos solavancos da estrada de uma época em que nem se sonhava(?) com pedágio.

http://fotos.sapo.pt/berny/fotos/?uid=ARZVzuCZSJrFuHsak44S&grande#foto
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Fora o aroma e a ardência provocada na pele devido à composição química da urina inconscientemente liberada por petizes, tudo estaria muito bom se a temperatura ficasse por aí, jungida ao calor do líquido, quentinho. Mas, como alertavam nossos avós, onde há fumaça há fogo. Nem Bob Marley dos bons tempos lograria fazer aquele fumacê todo que saía do motor do combalido veículo, nem calejados bombeiros de Nova York (olha aí nosso complexo de vira-lata) enfrentariam aquele fogaréu que iluminava o céu fechado nas imediações da Belo Horizonte do início da década de 1960.

Só não contavam com a astúcia (e o desassombro) dos passageiros e passageiras, adultos e crianças (eu, meus irmãos e irmãs e uma penca de primos e primas) que, guerreiros remelentos, desceram do carro e se puseram a combater as chamas usando os cobertores rotos e a água (não era mineral, caríssima para os padrões de consumo daquela gente) acondicionada em garrafinhas para ser bebida – e depois transformada em pipi nos lençóis consoante a Lei do vô Lavoisier.

Debelou-se o fogo. Em sequência, entrava em cena o cheiro de queimado, a formar dupla com o fedor de mijo. Bem assim dúvida de natureza existencial – ou de sobrevivência mesmo: onde e como dormir?

Foi aí que, olhando para o motorista de bigodões ruivos  (meu tio Sergio, então marido de minha belíssima tia Zéa, filho de tabelião, e num perrengue daquele, como era possível?), meu pai teve uma epifania e prospectou lá no fundo da memória um nome milagroso: Elcio.

Se celular era objeto inimaginável à época, telefone fixo existia, ostentava o seu charme e por isso era praticamente coisa de rico. Orelhão? Nem pensar, ainda mais num ermo daquele. Sucede que pobre, tal qual o sertanejo, é antes de tudo um forte. E depois de tudo um cara de pau. O fato é que o Bojudo (apelido de infância do meu pai) não só conseguiu o nome do primo (no catálogo de assinantes, aquele tijolão?): permitiu-se o desprendimento de ligar pro Elcio e “convidá-lo” a ser nosso anfitrião recebendo a turma toda de famintos e famintas.

Ao aristocrático e até àquela altura abonado hospedeiro, vítima de pesadelos do cão, outra alternativa não restava além de abrigar  os saltimbancos. Lembrei, lembrei (na minha idade, sempre que nos lembramos de algo, devemos comemorar, e comemorar muito): o parente agora desafortunado (vocês verão por que) ainda fora nos resgatar à beira da rodovia, naquela escuridão que nem sei: Olha, eu não sou disso não, sabe, mas naquela hora me deu uma vontade arretada de chorar, chorar e chorar aos soluços”.

No momento em que os quinze seres, um time de futebol de campo mais quatro reservas, chegamos à bela mansão do casal, no fim da noite, a visão era paradisíaca: a esposa de nosso salvador, mulher recatada e do lar, tipo aquelas de… filme americano (notem o complexo aí, de novo. Fora, complexo), já havia feito as camas com lençóis e fronhas brancos, imaculados e cheirosos (Meu Deus, e a urina noturna?), juntamente com toalhas de banho e de rosto, e preparado uma mesa com inúmeros acepipes e guloseimas (sumira tudo das despensas palacianas).

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Durante os dois ou três dias do conserto do motor (não sei quem pagou), providenciado por um mecânico conhecido do primo Elcio (eta homens bons), os andrajosos aproveitaram a mesa farta e se esbaldaram na piscina, prenunciando o que repetidamente aconteceria muitas vezes depois no Rio de Janeiro. É que passamos a filar boia noutra mansão, do meu tio Gilberto Perrone, em Jacarepaguá, no Rio de Janeiro, mas isso é outra história.

Do Elcio primo do meu pai, nunca mais tive notícias, não sei se está vivo, o que não impossibilita lhe deixar aqui meus agradecimentos pela acolhida especial, inesquecível.

E quanto aos demais personagens nominados? Embarcaram numa outra kombi e estão felizes lá no céu.

10/09/2016

(208)

mmsmarcos1953@hotmail.com

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