Empoderamento pela solidão (II)

Penso com mais frio n’alma ainda na solidão total
dos poucos minutos que terão restado
ao poeta Hart Crane,
quando, no auge da neurastenia,
depois de se ter jogado ao mar,
numa viagem de regresso do México
para os Estados Unidos, viu sobre si mesmo
a imensa noite do oceano imenso à sua volta,
e ao longe as luzes do navio que se afastava. O que se terão dito
o poeta e a eternidade
nesses poucos instantes
em que ele, quem sabe banhado de poesia total,
boiou a esmo sobre a negra massa líquida,
à espera do abandono?

(Vinicius de Moraes)

Me despeço da Seira Beira – por ora e já com saudades, pois sou um solitário acovardado.

Greta Garbo, quem diria, acabou no Irajá. Isso faz parte da realidade. Na ficção, elaboraram que Hilda Hirst saíra de sua chácara no interior de São Paulo para morrer num hospital de Campinas.

Peraí, é o contrário. A atriz sueca não terminara seus dias no bairro suburbano do Rio de Janeiro (era só uma peça de teatro) e a escritora e poeta brasileira, moradora da fazenda de sua família por quase quatro décadas, despedira-se da gente na cidade paulista dos times Guarani e Ponte Preta.

Eram ambas, se assim posso me exprimir, escancaradamente reclusas. E ninguém se surpreenderia com os comentários que as duas artistas externariam diante das recomendações “funcionais” dadas por dois homens a Tati Bernardi.

“No meio do papanicolau, meu ginecologista, casado há mais de 30 anos, me perguntou quando eu pararia com os romances frugais e teria um filho, uma família. Ele, me escavando por dentro, disse a seguinte e maravilhosa frase: ‘Tem que tomar cuidado pra não acabar sozinha’. Saí de lá com uma receita de antidepressivo e uma aula sobre o que é ser funcional. Pessoas funcionais não ‘acabam sozinhas’, ele disse.

“No gastro, meses depois, aconteceu algo muito parecido. Eu queria todos os remédios do mundo para queimação, azia, refluxo, mas ele queria apenas saber o motivo de ‘uma moça bonita dessa idade não estar casada e com filhos’. Eu expliquei que família é essa entidade que planeja ‘onde vamos passar o Ano Novo’ com oito meses de antecedência e que tudo nessa frase me apavora. Saí de lá com uma receita de antidepressivo e uma aula sobre o que é ser funcional. Pessoas funcionais não têm fobia de comemorar o ano novo em praias da moda com milhares de outras pessoas funcionais que, quase sempre, só conversam coisas meio tolas e da moda. Conversar coisas tolas, inclusive, faz um bem danado e, por isso, é umas das prioridades dos funcionais. O funcional tem como base fundante estar bem. Se você tem como base fundante estar mal, você não é um funcional.”

http://photos1.blogger.com/blogger/6764/564/400/Virtuvian%20Woman.0.jpg
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Profissionais que desbordaram dos limites de uma simples consulta de suas especialidades médicas, eles talvez não tivessem noção de que a paciente estava combalida do ponto de vista clínico mas vendia saúde no aspecto psicológico. Colunista da Folha de São Paulo, a Tati era a outra mulher que eu anunciara na postagem anterior do empoderamento (feminino). Na mesma toada da Seira Beira, a Tati é braba pra caramba, além de não se aproximar do nome nem da ideologia da Tatiana (‘Tati’) Bitati, a personagem burguesa do Veríssimo.

Experimentem alguma alusão a Marco Polo, o homem que cruzou boa parte deste mundo; digam que o sonho de vocês é entrar numa agência de viagens e atravessar o oceano num transatlântico; espalhem por aí que nada supera em emoção percorrer a Rodovia da morte ou se aventurar pela Transilvânia. Vocês vão ouvir, à medida que forem lendo, que:

“Quando digo a qualquer psiquiatra que ‘não curto exatamente viajar’ é como se eu apertasse o play de uma música chata, um hit de verão, com um único refrão que diz: au-au-au você não é funcional! Pessoas funcionais amam viajar, amam juntar uma turma enorme e viajar, amam praias lotadas, estradas e bares cheios. Amam festas de casamento e festas de Ano Novo e amam, sobretudo, casar e desejar ‘feliz Ano Novo’ quando é aniversário de alguém.

Concluindo suas diatribes (esclareço que não pincei todas as passagens do artigo), a Tati tece elogio aos doidos que em realidade nada têm de doidos e desfere a última lapada na dupla de doutores arautos da funcionalidade.

“Pensemos assim. Se eu olhasse agora, de cima do meu prédio, e visse um bando de gente, você estaria camuflado ali no meio da manada, com sua armadura de funcional, ou você seria um louco, na contramão, querendo entender sua angústia mesmo sabendo que ela só se chama angústia porque é justamente a parte que não entendemos?

“Mas calma. Se você é um pouco triste, um pouco tremelica o peito e dá ânsia, um pouco ‘só tinha gente chata então fui embora’, isso não é você, isso é a sua doença e um remédio pode te curar rapidamente.”

15/09/2016

(209)

mmsmarcos1953@hotmail.com

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