Memórias/Memorialistas (LXXIX)

O amor tem predileção por destruir as almas intensas porque sua queda é sempre mais bela. E toda alma destruída pelo amor se torna, ao final, bela.
– Luiz Felipe Pondé –

Na última postagem dentro deste tópico (número 353, em agosto 2022), retratei cena política ventilada no volume 4 das memórias do Pedro Nava, tendo me comprometido em trazer mais outros três episódios versando sobre o mesmo tema. Reincido no quarto tomo, Beira-mar. Quebro todavia minha promessa. A atual situação do país, geradora de ódios e paranoias, de efervescência generalizada, demanda aprofundamento nas abordagens, nas análises, nos ensaios, nas interpretações. Como em jogos de baralho, passo e abro mão de participar da rodada.  E nesse passo opto por convocar o Zelão, figura visceral, realçada de quando em vez pelo Nava em sua obra memorialística magistral e que já apareceu neste blog em apontamentos anteriores.

“(…) O Radium fora, cronologicamente, o último cabaré aberto naqueles tempos (…). Era numa loja, com portas de aço que levantadas davam entrada a um vasto salão oculto, a quem passava, por florido biombo. Dentro as mesinhas dispostas em torno à pista de danças. A orquestra ao fundo.

“Nunca mais pude esquecer do Radium pois lá é que o Zegão descobriu e enrabichou-se pela paraibana Genomisa – que explicava sempre seu nome feito dum pedaço materno de Genoveva e doutro paterno de Misael. De lá saíram os dois juntos, depois de uma noite de tangos (…). Seguiram entrelaçados pela Avenida do Comércio e dobraram em São Paulo onde tinha cama a deleitável morena – mistura de índio, negro e sangue branco. Resultara aquela perfeição cor de cobre e com reflexos do mesmo metal no cabelo ainda bem mastigado. Quando entraram no quartinho limpo, cheirando a funcho e alfazema, Genomisa perguntou. Você veio pra estar? Ou pra ficar? A resposta veio acesa. Vam’estar, bem e depois a gente vê se é para ficar.”

O trecho acima subsistirá infenso a julgamentos, não se discutirá aqui quem tem razão na tomada de atitude, a turma da cobrança (ela) ou as hostes da estratégia de despiste (ele). No detalhe marcharei com os isentões e as isentonas nas quebradas da Belo Horizonte dos anos 20 do século passado. A narração se complementará jungida a “fotografias”, nas quais o herói e a heroína ritualisticamente se dispõem ao centro do leito num indefectível amálgama para deleite de voyers.

“Aí ela foi tomando e arrumando as peças de roupa que o moço ia tirando e quando ele espichou sua nudez magra na cama ela foi a uma prateleira, virou de costas as imagens de São Jorge, de São Roque, São Jerônimo, da Virgem e deixou acesa só a lâmpada vermelha da cabeceira e começou a despir-se. Pendurou escrupulosamente seu vestido, o corpinho, a saia do bordel. Voltou lavada e ainda toda molhada e fresca do chuveiro, cheirando a sabonete e a dentifrício. Jogou o roupão, pegou uma toalha também. Sua cor castanha, morena, quase branca, foi mutada pela luz vermelha num cobre, num coral, num cinábrio – como se toda sua dona tivesse sido passada a realgar ou ao vermelhão de antimônio. Parecia sangrar pela boca escura onde cintilavam rosados claros de dentes, pelas auréolas e bicos pontudos dos seios pequeninos e muito altos. Era enxuta e deitada ao comprido e de costas trançou as duas mãos na nuca. O moço levantou-se num cotovelo e olhou do sinciput aos artelhos aos pés à ponta dos dedos daquela paisagem prodigiosa. Toda ela vibrava e brilhava como estátua de vermeil polido onde apareciam três manchas cor de sassafrás.  Duas no alto, onde os axelhos divididos ao meio por separação risca natural mandavam uma asa em direção ao braço e outra em direção ao tronco. Duas borboletas parecendo bater de leve a cada movimento da respiração. A terceira era um triângulo de base larga indo de ponta a ponta ao ponto mais alto de cada dobra da virilha. O vértice perdia-se embaixo, no negativo do triedro coxa ventre coxa. Esta e a outra – as coxas – alteavam-se na parte anterior, bem no encontro tronco e a saliência que faziam neste ponto e o vazado de mais para baixo davam a impressão dos sustentáculos que estilizam em terminação de sereias os torsos das cariátides barrocas como as que agüentam, perto do coro, na Matriz do Carmo de Sabará.”

Por evidente, o “mutada” ali em cima se refere a transformação visual, a mudança estética, e não a outro significado que se lhe emprestam os dias de hoje. O microfone do casal arrosta o mute, emite berros, vozes guturais, decerto lassidão a caminho – mas ainda muito distante de rematar a cena caliente.

“O Zegão, concentrado nos olhos, devorava com eles a carne que se esticava junto à sua. Mas Genomisa virava a boca, abria a boca, mostrando a ponta da língua como a ponta de uma cabeça de cobra, e tudo na boca era escuro exceto os dentes afastados na frente, fazendo uma greta entre os primeiros incisivos. Boca de mulher sem vergonha – pensou meu amigo, estendendo mão sábia que logo emaranhou-se em moita cerrada e basta – macia como seda. Eu era o confidente e por ele soube das proezas que a paraibana em brasa lhe inspirou e de que compartia aos urros – espumando, rangendo dentes, estalando juntas com a bacia levitada corpo arcobotado e fazendo plano inclinado de que ele só não despencara porque – dizia – era bom de montaria. Além do mais ela era dotada da prenda de ter chupeta. O encontro dos dois parecia uma luta, um pugilato, uma peleja, uma violência cheia de regougos e gemidos. Imitava um assassinato. Subitamente ele estacou a fundo e só ela, apenas ela, continuou num tremor no princípio de asa de beija-flor e depois diminuindo e morrendo que nem tatalar de borboleta fincada pelo pontão de aço do colecionador. Mas renasceram em folha, novos e rindo um para outro contentes de sua juventude e da consciência dos acordes que um poderia tirar do instrumento fantástico do corpo do outro. Lavaram-se sem nenhuma vergonha de muito se olharem até rindo mais e curiosos das posições que tomavam ao som de águas jorrando jarros baldes bacia de ágate batendo tinindo. Sentiram fome de proteínas e foram ao bife com ovos num escuro boteco da esquina de São Paulo e Guaicurus e encolhidos um contra o outro, ouviram porção de tempo a vitrola raspante com a voz de Estefânia Macedo cantando as musguinhas lindas de Haekel Tavares. Purificados voltaram. Abriram o quarto e o cheiro deles como um flagrante deles próprios recolocou-os nus deitados se olhando com seriedade dramática. Um deus desceu e começaram pesquisas de uma doçura tão aguda que doía. Que era ardente e seca como areias nos olhos. Foram até o fim de seus fins, onde acaba o mundo, a carícia se confunde com a sevícia e começam as pedras dos desertos das sesmarias do Marques de Sade e do Cavaleiro Sacher-Masoch…”

Como se lê, como se vê nas palavras vívidas do memorialista -, a paixão do Zegão pela Genomisa vai descrita pelo escritor mineiro numa pegada encontradiça na obra do mais célebre escritor baiano, se não pela forma, pelo sobrenome do pai da Tieta. Por isso que o amigo personagem do livraço do Nava, inebriado ainda pelo fulgor daqueles dias na casa de tolerância belohorizontina, se houve com sofrimento no findar de seu enrosco com a prostituta, evadida por fiel à digna profissão de servir ao coletivo, nada de monogamia.  

“Aquele rabicho envultou o Zegão mês inteiro em que ele largou tudo – emprego e faculdade – para passar o dia e a noite incrustado na zona. Ela acordava-o de manhã, já lavada, um lenço amarrado na cabeça, fresca, olorosa, decente, laboriosa e pudibunda como se não fosse a parceira do que se passara de explorações tácteis e orais na carne cavidades pontas de carne latejante em cima daquela cama. Agora, bem, você queu vou buscar o café docê. Ia. Tomava a xícara, bebia. Levantava-se. Metia o pé na rua. Pensava vagamente nas coisas e no que via porque não conseguia se fixar em nenhum ponto do espaço e do tempo logo invadido por analogias de outras épocas outros lugares. Ubiquava-se. A insegurança total fazia-o desistir das aulas e voltar para a rua São Paulo onde no quarto limpo, mudado e arejado, a puta laboriosa bordava e cosia. De volta? Bem. Tava mesmo tesperando. Sabia… Foi assim mês inteiro até que o Zegão um dia, ao retornar, não encontrou mais a Genomisa. Saíra com a mala – disse a dona da casa – parece que foi pra Rosa. O Zegão correu à Rosa. Nada. A paraibana sovertera. De raiva, aquele porre de vomitar lavar tudo e coisa estranha! ao acordar sentia só a ressaca e nenhuma dor de corno. Pensa que pensa e ele concluiu que era mesmo drogado todas as manhãs naquele cafezinho. Foi também a opinião de meu tio, o Nelo, quando lhe repetimos o caso. Ele ouvia as confidências atento, olho invejoso – tratando o Zegão carinhosamente de mascalzone, de furfante.”

#Pedro Nava
#Beira-Mar
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14/02/2023
(358)
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