Memórias/ Memorialistas LXXXII

O que é fragmentado, irregular, sem sentido lógico e cheio de contradições, alguns anos depois, vira uma linda história, com irretocável coesão textual, na nossa exposição. Nossas glórias e desventuras precisam de um tempo de sedimentação para emergirem mais palatáveis.
– Leandro Karnal – 

Não li toda a Biblia. Nas décadas (sete, conta de mentiroso) de minha sobrevivência neste vale de lágrimas me ative em conhecer parte da obra secular, dedicação insignificante em termos quantitativos.

E olha que, dobrando-me à vaidade intelectual, nutro fascínio por textos bem articulados, português castiço, os quais, em meu juízo, vão superar algumas vezes o próprio conteúdo do que se entremostra – na narrativa bíblica em nosso caso. Incursionei pelo Novo Testamento mercê da doutrinação dos padres salesianos no Colégio Dom Bosco, aqui em Brasília, nos idos de 1965/1967. Me inclinei timidamente para as boas novas talvez para prestigiar Marcos, meu xará e um dos quatro evangelistas.

Isso, no entanto, não implicou que eu tivesse a virtude da fé divina. Minha inclinação religiosa, digamos, ruma ao encontro de confissões do Erico Veríssimo e portanto com elas se identifica. Trazendo novamente à colação a sabedoria, as lições do fantástico gaúcho, dou executoriedade ao meu alvitre constante na parte final da minha postagem neste blog, a de nº 361, de 29.05.2023.

“Tenho encontrado certa dificuldade em explicar a amigos e leitores a minha posição em face de Deus. Repetirei que sou um agnóstico, isto é, um homem que não se encontra na posse de provas convincentes que lhe permitam negar ou afirmar a existência dum Criador.

“Posso, no entanto, afirmar que não sou destituído de sentimento religioso, pois tenho uma genuína, cordial reverência por todas as formas de vida, e um horror invencível à violência.

“Sinto grande afeição e admiração pela figura histórica de cristo e acredito sinceramente em que, se a ética cristã fosse realmente posta em prática, as criaturas humanas poderiam resolver os seus problemas de convivência num mundo que cada dia se complica mais e mais pois leva à solidão e à agressividade.”

Desavir? Tais palavras foram ditas/escritas há praticamente cinquenta anos, porém a impressão é de que foram dadas a público ontem mesmo. Para ficar na linguagem bíblica, jogue pedras quem por acaso não enxerga que estamos cada vez mais segregados, degredados, com o vezo de subir ao pódio ostentando papel de atletas na disputa por medalhas em modalidade que enaltece brutalismo e violência contra o próprio ser humano.

Nosso Veríssimo adensa um paradoxo: o agnóstico que se torna num profeta ao predizer características de algumas igrejas neopentecostais existentes nos dias de hoje.  

“(…) Infelizmente o que vemos em certos círculos religiosos é um grande farisaísmo, um Cristianismo puramente de fachada. Citando, com a devida licença do autor, uma personagem de ficção (O Dr. Leonardo Gris de O Senhor Embaixador), direi que certos homens de negócio que se dizem piedosos conseguiram erguer uma parede de concreto entre suas igrejas e seus escritórios comerciais, de maneira que assim podem não só obedecer ao  preceito bíblico segundo o qual a nossa mão direita nunca deve procurar saber o que a esquerda faz, como também lhes torna possível acariciar ao mesmo tempo com uma das mãos o Cordeiro de Deus e com a outra o Bezerro de Ouro. E quando algum escritor denuncia essa prática hipócrita, a primeira idéia que ocorre a esses donos do Poder é denunciar o ‘escriba subversivo’ à Polícia. (‘Para isso pagamos impostos!’)

“Não aceito as fábulas bíblicas da Criação nem idéias como a do Paraíso, o pecado original, a Santíssima Trindade e outras que tais. Acima de tudo não acredito no Inferno e na danação eterna. Creio que os cristãos que admitem essa monstruosidade estão insultando o seu Deus, que deveria ser logicamente a encarnação da suprema bondade e da mais alta justiça, isso para não falar na sua capacidade de perdoar. Por outro lado parece-me que aceitar o mito de que os que se comportam bem na vida terrena ganharão o Céu, onde permanecerão por toda a Eternidade fantasiados de anjos, entre nuvens cor-de-rosa, tocando lira e cantando – seria fazer pouco, muito pouco da imaginação do Ente Superior que teve capacidade e imaginação para criar o Universo com tudo quanto nele há – o que, convenhamos, é realmente um feito prodigioso.

“Não, meus amigos, na minha opinião um problema da tremenda magnitude desse que envolve o mistério do Universo, de nossa vida e de nossa morte, merece, ou, melhor, exige uma explicação menos simplória e pueril do que essa que as Escrituras nos oferecem como chave do grande Enigma.”

Se, montado no alazão do ceticismo, o memorialista não impiedoso desanca a crença absoluta no Ente Superior que vai referida nas Sagradas Escrituras, não deixa ele de capitular em face da beleza arquitetônica dos templos e igrejas, onde avultam rituais de puro êxtase.

“O curioso, entretanto, é que não raro me comovo ante a serena grave beleza de certos templos – principalmente das velhas igrejas e mosteiros românticos (Este claustrófobo ama os claustros!). Quando visitei a Basílica de São Francisco, em Assizi, senti a presença do Poverello. Em Gênova, numa meia-noite de Sábado de Aleluia, assisti a um serviço religioso numa antiga igreja gótica, que me deslumbrou pela sua colorida pompa litúrgica. Numa memorável manhã de domingo, em Paris, na Catedral de Notre Dame, no momento em que o grande órgão acompanhado de fanfarras rompeu numa tocata de Bach, senti um arrepio em todo o corpo e tive a impressão de levitar no ar numa experiência quase mística, que quero crer tenha sido mais de natureza estética do que propriamente religiosa.”

#Leandro Karnal
#Solo de Clarineta 2
#Erico Veríssimo
#Bíblia

18/09/2023
(364)
mmsmarcos1953@hotmail.com

    

      

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