Memórias/Memorialistas LXXXIII

Como sabemos, o tempo não existe. Ele é uma daquelas criações humanas que nos amparam, ao nos localizar em eixos imaginários -como os tabuleiros com reis, deuses, ricos ou demônios, bandidos, monstros. Acreditar numa linha e sentido nos apazigua.
– Maria Homem –

Não tem jeito, o desfecho da apropriação das memórias do Erico Verissimo não mais pode ser adiado. O anúncio da despedida do “Solo de clarineta 2”, segundo e último volume, coisa dolorosa, eu o dera numa postagem até certo ponto remota, que foi sucedida por outra, por mais outra… e se impõe chegar ao fim da vereda.

Para recambiar ao sossego o grande escritor, salto o capítulo de abordagem da ciência política, em detrimento de nós todos e todas (o que ele acharia do “todes”?), que por consequência nos privamos dos seus ensinamentos.

Com humildade genuína, sincera, a esconder sem êxito sua erudição, o memorialista passeia não altaneiro por Karl Mark, Mihalo Markovic, Erich Fromm, Herbert Marcuse, levando-me a que seria útil, profícuo ter o Erico aqui para, à luz dos tempos históricos bem vividos, analisar o desvario dos jogos mortais Rússia x Ucrânia e Israel x Palestina.

Posto isso, inicia-se neste momento a sessão de terapia de quem nos brindou, entre outras maravilhas da literatura brasileira, com a saga “O tempo e o vento”

“Que espécie de homem sou eu? Creio que deixei nestas memórias – que alguns talvez possam classificar como auto-biografia – elementos que podem ajudar o leitor a encontrar resposta a essa pergunta. Claro, faltam muitas peças neste jogo de armar. Algumas delas omiti voluntariamente por diversas razões; quanto às outras omissões, nada posso dizer porque, se pudesse, elas não teriam sido ‘involuntárias’.

“Empreguei em muitas destas páginas o estratagema um tanto batido e convencional de dividir minha personalidade em duas ou muitas partes. Está claro que, a rigor, a coisa não é bem assim. Não temos dentro de nós dois eus, mas uma legião deles. E ninguém como o escritor de ficção – talvez apenas o ator – exerce com mais frequência essa faculdade de multiplicar-se.

“Sempre senti em mim todos as possibilidades, tanto para o bem quanto para o mal. Cometi todos os pecados da imaginação, bem como muitos outros que não foram apenas da fantasia. Depois que publiquei O Arquipélago, muitos leitores quiseram saber se a personagem Floriano Cambará é autobiográfica. Ora, parece-me ter deixado claro que, no que diz respeito a fatos, nossas vidas diferem muito uma da outra. Nem todas as coisas que aconteceram a Floriano aconteceram a este contador de histórias. Poder-se-ia dizer, isso sim, que psicologicamente Floriano e eu somos irmãos gêmeos ou sósias.”

A psicoterapia quase se convolava num embate. O escritor pacato e discreto desata a falar, a verborragia não seria típica de quem se expõe e se solta apenas no escrever sua ficção literária. Com efeito, uma enxurrada. Tédio ou depressão?

“Se me perguntarem que constantes do meu temperamento sinto com mais frequência, eu diria que é uma curiosa combinação de preguiça – física e mental – e timidez. Tenho passado a vida a combater ambas, muitas vezes com o mais positivo sucesso.

“Sou de raro em raro assaltado pelo tédio, mas reajo com a maior energia, repelindo-o, pois me parece que entregar-se a gente a esse inimigo cinzento é uma prova de falta de imaginação e senso comum – pois como pode aborrecer-se um homem que pensa num universo tão cheio de desafios ao seu espírito, à sua coragem, à sua capacidade de imaginação e de iniciativa, aos seus desejos de aventura, um mundo onde há tanta coisa a aprender, descobrir, compreender, desfrutar e conquistar?

“A despeito de todas as minhas pluralidades psicológicas, digamos assim, e das minhas contradições, que não são poucas, creio que a história da minha vida seguiu uma trajetória clara e até certo ponto coerente, e que se tem mantido ininterrupta desde meus dezoito anos até hoje. É como o leit-motiv duma sinfonia.

“Depois daquela terrível noite de 1922, quando meus pais se separaram, eu saí em busca do Lar Perdido.

“E tudo quanto até hoje tenho feito ou deixado de fazer, todas as minhas audácias ou temores, meus avanços ou recuos, a minha fidelidade a certos princípios – têm sido determinados por essa busca no tempo e no espaço. Eu poderia gritar triunfalmente que por fim encontrei o que procurava. Mas como gritar não está na minha natureza, sussurro aqui essas serenas palavras de vitória, que têm mais a ver com a minha vida de homem que com a de escritor.

“Nem toda a casa – já se tem dito muitas vezes – é um lar. Nunca, porém, fui indiferente à expressão material do lar, o que se explica pela minha tendência de ter do mundo uma visão plástica. A noção de lar está em mim associada à de casa – o conteúdo inseparável do continente. Ambas como que se interpenetram: há nelas uma espécie de interação.”

Pois bem. Vê-se, deitado no divã, um homem provecto elucubrando.  Prestes a completar 70 anos (caramba, o que será de mim quando eu tiver essa idade?), ele rechaça com veemência a provocação feita a si por ele mesmo, nos moldes do Egon na obra do Pedro Nava:

– Em suma o que te falta agora é fazer as pazes com a idéia da sua própria morte.

A terapeuta – que chamarei de Ariana Domingos Capaldi, profissional de currículo admirável, cacifada pela experiência de duas décadas como psicóloga ativa, entre 40 e 45 anos, mulher inteligente, bonita e sedutora, que abraça árvores e corre com os lobos sob a lua da Chapada dos Veadeiros – aguarda com ansiedade incontida a revelação do porto em que aquela contenda iria dar.

Deposita nas pernas de bailarina o bloquinho de anotações clínicas a tempo de registrar o teor da resposta do Erico a ele mesmo:

– Pazes? Vou lutar contra ela (a morte) com todas as forças do corpo e do espírito, mesmo sabendo que fatalmente terei de um dia render-me incondicionalmente.

O Erico instigador adensa o ataque:

– Vai ser uma batalha dura, em que tuas armas serão apenas palavras, palavras e palavras…

O quase deboche do Erico mereceu nova reprimenda do Erico agredido.

– Sim, e talvez também um vidro de xarope contra a tosse.

E o diálogo áspero dos Ericos exigia a essa altura mais atenção da parte da Dra. Ariana, que, após olhar com discrição para o relógio de pêndulo presenteado por seu saudoso pai, declara finda a sessão. De conseguinte, a terapeuta, sempre meiga mas sempre incisiva, levanta-se e vai dar um abraço respeitoso no Erico, já recomposto como um único ser. Ocorre que o ainda analisando não faz menção de evadir-se. Ao revés, empaca na porta do consultório, emendando um requerimento à psicóloga para que prorrogue mais um pouco a sessão. Como sói, o pedido recebe pronto deferimento, abrindo-lhe a senda para suas derradeiras observações.

“O importante é que um dia despertei para a mais doce das realidades: a de que tinha encontrado o lado perdido. Concluí que a linha melódica de minha vida tinha sido, fino modo, uma busca da casa e do pai perdidos. Ali estava a casa. Os quadros, os móveis, o aspecto geral, a gente que a visita, os amigos, os visitantes inesperados. E o pai. Também isso, esse problema estava resolvido. (…) E agora eu descobria que me havia tornado o pai de mim mesmo. Não se trata apenas dum jogo de linguagem. Então dei a busca por terminada. Isso significa que não preciso depender de ninguém para meu sustento, seja material ou espiritual. Gostaria de saber o que o meu filho pensa de mim. Tento agir de modo a não [transmitir] a necessidade de buscar um pai.”

#Maria Homem
#Solo de Clarineta 2
#Erico Veríssimo

25/10/2023
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