Comunicado Bocadim

Comunicação não é o que a gente diz, é o que os outros entendem. 
– Nizan Guanaes –

 

“Trabalho de cavalo”, assim a grande e baixinha Lucelia Santos rotulou a atividade de produtor e produtora de arte e cultura. Numa primeira mirada, soam grosseiras a referência à altura dela (é afeto, creiam) e a comparação que externara, mas intuo que a atriz nunca disse algo tão verdadeiro, tão pertinente. Você se esfalfa (alfafa?), rala o tempo todo e no mais das vezes não colhe reconhecimento, a remuneração não é justa, ou melhor, é justa – no sentido de apertada. Em suma, você  nessa função ganha menos do que precisa e menos ainda do que merece.
Dado esse enfoque desestimulante, cuidei que se fazia oportuno reproduzir o desabafo da Dayse Hansa, produtora cultural do Teatro Mapati há quase 15 anos. Reportando-se a um dos projetos que concebeu e realizou (BOCADIM, nove anos de história), declara-se apaixonada ainda pela profissão que escolhera, carregando em seu currículo acadêmico o curso técnico e o curso superior da área, no entanto já sem estímulo para prosseguir na jornada. No propósito de não comprometer o eviscerar de nossa depoente, não suprimi do excruciante registro da Dayse nem mesmo os trechos com observações de cunho técnico.  

“Brasília, 16 de dezembro de 2022.

Boa noite a todas e todos,

Primeiro, queria agradecer a todas(os/es) por terem estado conosco no festival BOCADIM de 2022.

Quem ainda não conhece o histórico do projeto: nascemos, em 2014, resultado de minhas indagações de pq a maioria dos projetos musicais e festivais na cidade não tinham um line up onde a diversidade se fizesse presente e sabemos nós que, ainda que a realidade tenha mudado um pouco, há muitos desafios a serem superados, mas esses desafios só serão vencidos quando projetos como esse e tantos outros na cidade se colocarem pra jogo em um país com profundas desigualdades sociais, onde o fazer artístico e/ou o seu consumo muitas vezes é tido como artigo de luxo, pra pouco(as), quando a cultura é um direito, assim como a educação.

Começamos numa praça (a dos prazeres, na 201 norte, em Brasília) e, de lá até aqui, muita luta e aprendizados diários, mas a certeza do quão necessário era o projeto resistir às intempéries, à falta de apoio financeiro (sim, nosso primeiro apoio se deu apenas em 2018), pois acreditávamos (e ainda acreditamos) que a cultura estabelece pontes entre pessoas com pensamentos diversos, e portanto ela tem um imenso poder de transformação. E assim caminhamos, nesse ideário, dia a dia, pilar a pilar, erro a erro acreditando e investindo nosso suor e nosso dinheiro em um propósito maior. Sem falsa modéstia, a simples existência do projeto com título bem identitário provocou positivamente a produção cultural na cidade, sobretudo em alguns/mas realizadores/programadores(as), sobre a necessidade urgente da pluralidade vista e sentida nesses outros projetos, além de pautarmos a gestão governamental e termos pouco a pouco reivindicado e conquistado espaço nos fomentos.

O saldo até este ano, em nossa visão, era de que fazer era mais importante do que qualquer contratempo; esse geralmente é combustível, mantra da maioria das pessoas que realizam e até fizemos de peito aberto e corações igualmente escancarados até que percebemos que as mudanças que tanto buscávamos já começavam a ser vistas e que bom que foi em 10 e não em 40, 50 anos e, nessa constante reflexão do que fizemos, produzimos e influirmos; e, na certeza da arte como ferramenta estratégica de possibilidade plural de indução de outras reflexões coletivas, foi que desde 2021 vínhamos elaborando sobre não sermos apenas um festival identitário, pois entendemos que a disputa é pelo direito a viver no mundo, na cidade, no bairro, na quadra como qualquer outra pessoa e, portanto, que necessitávamos agora construir uma estratégia de, com a arte, comunicarmos que os guetos, os armários, as bolhas não mais seriam nossos habitats e, sim, que todos os lugares devem nos caber com todas as contradições e camadas que nos recortam e assim chegamos em 2022 com o BOCADIM de tudo para todes, pq sinceramente acreditamos e precisamos continuar a acreditar. Contudo, o exercício da realização é muitas vezes um tanto quanto duro, a maioria aqui sabe do que estou fazendo, pois se encontram investindo em suas carreiras.

A luta para desenvolver e manter um projeto independente não é algo fácil. O perfil de realizadores(as) de festivais independentes que conheço (e em que me enquadro), desenvolvem e investem do próprio bolso por muito tempo nesses projetos e raro é o fechamento da edição na qual se empatam receitas, pq, no geral, ficamos no vermelho por meses, pagando bancos; e pq fazemos isso? Pq investimos numa cena independente? Por amarmos música e acreditarmos no poder da arte.

Arquivo: Bocadim 2022

As poucas pessoas que me conhecem aqui na intimidade sabem que sou franca e aberta para diálogos olho no olho com disposição de solução, e que, algumas vezes, mesmo afetada por investidas duras e injustas, sempre me mantive no caminho de continuar acreditando e investindo nessa cena ao invés de em mim mesma, na minha carreira profissional e acadêmica, na minha arte (sou artista visual, para quem não sabe) e pq, sobretudo, me considero uma agitadora na cidade, mas confesso que neste ano, em relação a esse projeto em que tanto me desafiei, motivei, investi e acreditei, as baterias se foram de vez e sobrou um coração com areia, a velha conta vermelha de sempre por atrasos e, portanto, pagamento de diárias extras a fornecedores e a falta de público nos dois primeiros dias de festival e um público que se acostumou a reclamar de absolutamente tudo, mas o mesmo público que retirou, por dia, 6 mil ingressos, mas, ao que parece, público esse que não podemos ousar em responsabilizar e questionar pq não prestigiou o festival pq afinal era gratuito e a programação privilegia artistas locais/regionais?

Maior lineup de nossa história, pensando na inclusão, no balanceamento e na representatividade. Artistas e produtores(as) que respeitamos, colando e ajudando a definir uma curadoria. Aumento de mais 1 dia de festival por tomarmos a decisão de, em vez de os(as) artistas locais tocarem num palco menor previsto no projeto, colocarmos todos(as/es) no palco principal, com toda infraestrutura disponível do artista que abre o line up do dia ao artista/banda que o fecha, obviamente com alguns ajustes no transcurso dado algum rider mais complexo com equipamentos exclusivos apenas para facilitar viradas de palco (e não termos atraso, que não tivemos nos 2 primeiros dias), a gente ter a falta de sorte de item essencial da mesa de som do PA queimar no último dia, ainda que com rápida solução do item (sem falar no primeiro dia de passagem de som: simplesmente o fornecedor não levar o cabo de AC no tamanho que deveria dispor e deixar a todes esperando), passando por desajustes ocasionados por muita maleabilidade nossa com demoras em trocas de palco, de passagens de som (pactuadas com muita antecedência), atraso de pouso de aeronaves e demora na logística de retirada de bagagens, entre uma centena de pequenos contratempos não ocasionado por nós, mas que, enfim, são nossos.

A quem imagina que não erramos ou não fazemos reflexões e reconhecimentos de erros de gestão/produção, digo: erramos! Com certeza, evidente que sim, e tivemos nossos erros nessa edição, como qualquer projeto sempre tem algum contratempo de produção, mas queria deixar registrado aqui que estávamos nos preparando há 1 ano para essa edição do BOCADIM (estudos, milhares de horas ouvindo música, ajustando projeto, negociando com artistas e fornecedores)  e, ainda assim, muitos contratempos ocorreram e ainda se fazem presentes até este momento, mas agora, mesmo com toda esperança por um país melhor em 1º de janeiro de 2023, a gente sai dessa edição com a necessidade de encerrar o festival, pois chega um momento na vida em que a luta enfraquece e a gente também envelhece, os pensamentos e convicções mudam e uma delas adianto aqui, que é a necessidade real de se trabalhar uma cultura de formação de plateia urgentemente, ao mesmo tempo e com muito carinho e respeito a quem nos lê, da necessidade da profissionalização não somente de gestores(as), produtores(as), mas de artistas sobretudo.

Além disso, de cultivarmos entre gestores/produtores e artistas mais parceria e principalmente empatia. No mundo em que vivemos, cruel, desigual, não pode mais caber o fomento à cultura da impaciência, das palavras duras, dos cancelamentos sem escuta ativa ou disposição em mediar.

De todas as questões vivenciadas por mim e toda minha equipe, algumas delas de corpo e alma há meses nesse trabalho para tentar garantir o mínimo de conforto e respeito a todes, foi saber de fala com riso e deboche de membro de uma das equipes de artistas:

– Ah, passamos do combinado, sim. Ponha na conta da Dayse!

Não, gente, não é assim que eu penso, não é assim que trato com as pessoas e não é nessas bases que eu quero continuar a atuar na cultura, pq esse projeto não me beneficia financeiramente, pelo contrário, mas esse projeto impulsiona centenas de pessoas numa egrégora coletiva. Eu nunca cheguei para alguém e disse: ‘se vire! tô nem aí, assuma o B.O.’; sequer nunca me permiti deixar cortar artista de programação em que eu tivesse ingerência, muitas vezes fazendo uma ginástica quase que impossível para tanto e, nessa última edição, quase tendo problemas com a vinda da segurança pública e ameaça de voz de prisão por conta de alvará que venceu em seu tempo no último dia. Portanto, mesmo com todos os desafios e contratempos ocasionados ou não pela gestão/produção e parceiros(as/es) fornecedores(as), não podemos continuar a manter e cultivar essas práticas.

Como não devemos, para além dos erros da gestão/produção/técnica/fornecedores, continuar a não nos mudarmos e a mudar nossos processos de trabalho, como não aparecer em passagem de som, chegarmos atrasados(as/es) nelas e não pedimos desculpas, permanecermos(as) além do combinado prejudicando os(as) demais, não termos maleabilidade com problemas que ocorrem e sobretudo, mesmo sendo artistas, sejam também um pouco gestores(as)/produtores(as) de suas carreiras para entenderem processos, contratos, orientações e tudo mais.

Já finalizando… Algumas produções aqui (não são todas) tiveram alguns contratempos em relação ao nosso pedido de liberação do ECAD e isso, além de ter quase que nos deixado no risco de levarmos multa, pois nem todas as produções encaminharam as liberações antes do festival como combinamos, estamos desde o dia 5.12 numa luta diária com o órgão.

Não temos recursos para o ECAD? Sim, temos, um recurso calculado de acordo com a previsão de artistas autorais que teríamos (esmagadora maioria) e execução de tracks mecânicas por alguns/mais Djs que não executam autorais, esse valor pequeno não surgiu de forma aleatória, mas, sim, do estudo do que teríamos no lineup e, portanto, com maioria autoral  nossa prática (como a de outros projetos pequenos e independentes) de contratarmos shows, mas não termos de pagar pelas músicas dos próprios shows que contratarmos, pois seria duplo pagamento, não pq não mereçam, mas pq a planilha é enxuta e tal prática (liberação para shows) tem previsão legal no regramento da lei de direitos autorais.

Esse assunto pra gente é delicado, pois o ECAD não é um órgão que é maleável (e tudo bem, está no direito deles de proteção de autores e concordamos com isso, apenas não concordamos com a possibilidade de não termos margem para negociar) e isso vulnera um festival independente, sem bilheteria e cujo extras sobrarão para a coordenação do projeto e meses a fio em relação com bancos para dar conta de quitar. Portanto, a quem disse para nossa equipe que estaríamos segurando segunda parte do cachê “apenas” por tal pendência, pediria um pouco de reflexão de tudo que envolve produzir de forma independente (pq o foco não é o lucro). Não prejulguem sem saber exatamente o que passamos para levantar tal projeto.

De todo modo, em relação ao ECAD, não teremos mais condições de eles isentarem algumas apresentações, pois não há mais tempo hábil e, portanto, iremos, mais uma vez, assumir os extras que vierem dessas despesas que não estavam previstas; porém, liberações pactuadas em contrato com todes(as), tá tudo bem, mesmo! Contudo, pedimos que em outras produções/festivais possam se atentar a esses e outros detalhes (nem sempre é sobre imposições absurdas como ouvimos) que, mais uma vez, vulneram projetos e pessoas, principalmente os que investem em cenas nas quais vocês ainda estão presentes e necessitam de apoios/incentivos. Dos poucos cachês que restam para pagamento, serão quitados na próxima segunda-feira, dia 19/12, mesmo com tal pendência.

A produção/gestão era minha paixão, mas nestes meses eu cunhei uma reflexão que é:

‘A produção é um relacionamento abusivo, a gente só permanece porque ama’.

Porém, chega um momento em que é preciso romper com lógicas e ciclos, ainda que tenhamos apego ou pensemos que o amor supera todas as coisas.

No mais, agradecer a toda equipe BOCADIM, membros do MAPATI e da AAMA pelas noites sem dormir meses atrás, véspera e dias do festival (não, isso não é glamour, é desculpa e obrigado), choros e pela dedicação de corpo e alma ao projeto e numa entrega com contratempos, mas digna e meritória. Sem vocês e tantos(as) outros(as) que por aqui passaram, não teríamos chegado até aqui.

O BOCADIM tira um sabático que pode virar encerramento definitivo do projeto a partir de agora, mas aqui fica a certeza do quanto contribuímos para a cultura, diversidade e ativismos, para a cena independente e que até então foi vibrante e foi bonito. Ainda, me desculpo aqui por eventuais comportamentos não bacanas cometidos por mim e/ou qualquer membro de nossa equipe, certamente não era/foi o objetivo.

Por fim, agradecemos a parceria e desejamos a todes(as) artistas;/bandas e suas equipes, saúde, força, foco, fé, coração de vento e água, brilho nos olhos e sucesso em suas jornadas.

Fiquem bem.

Cordialmente,

Dayse Hansa
Coordenadora geral
Festival BOCADIM”

#Nizan Guanaes
#Bocadim
#Teatro Mapati
#Dayse Hansa

31/12/2022
(357)
mmsmarcos1953@hotmail.com

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