Obsessões musicais XXXII
O lobo frontal monitora os acontecimentos e as recordações, e julga o que deve ser considerado relevante em uma dada situação. Se essas operações não forem bem executadas pode ocorrer a perseveração. O lobo frontal, se avariado, pode bloquear a percepção de novos fatos e fixar a atenção em evento único. Então, uma ideia constante dominará a mente, a transparecer em um comportamento repetitivo.
– Luciano Magalhães Melo –
Natalia Jereissati prestou tocante depoimento à edição da VEJA de 16 de fevereiro próximo passado. Antes de falar da matéria, que me seja franqueada uma observação: saudade dos tempos em que o diretor de redação da revista era o Mino Carta – por coincidência, com três belos quadros de sua lavra expostos na sede nacional da Legião da Boa Vontade, aqui em Brasília, em cuja biblioteca (sois concurseiro?) ora cometo esta postagem. Aliás, o Mino anda sumido da sua CartaCapital há mais de mês, será por motivo de saúde? Da mesma sorte, não temos notícia de outros ilustres integrantes do Clube dos Nonagenários, Sebastião Nery, Zuenir Ventura, Ziraldo, Luiz Fernando Veríssimo, esse ainda membro honorário, voejando em cima dos 88 anos.
Volta à cena Natalia.
“A doença é um detalhe na vida do meu filho.” Do relato não há discordar. No começo, a família de raízes no Ceará, porém hoje mais candanga do que tudo, sofreu o baque do diagnóstico do filho João – Síndrome de Apert, “uma condição genética que leva à fusão dos ossos do crânio, das mãos e dos pés.” Dias depois, a matéria foi replicada na Folha de São Paulo, matéria na qual, ao lado de seu marido, Igor Cunha, a mãe do João, 6 anos e neto do senador Tasso Jereissati, publicizou-se que o casal, em meio a cirurgias inúmeras do menino, idealizou e está “ajudando a financiar um simpósio internacional, dias 14 e 15 de março, que acontecerá no Hospital de Reabilitação e Anomalias Craniofaciais da USP (Universidade de São Paulo), em Bauru, interior paulista, referência brasileira no tratamento dessas síndromes.”
Curioso é que, na entrada deste 2024 e por via oblíqua, eu tomara conhecimento dessa doença ao escutar e pesquisar sobre determinada música que sempre me arrebatou. A cantora tem igualmente um dos filhos acometido pela síndrome rara, tendo ela escrito um livro famoso sobre tal condição, cujo título é O Que é Que Ele Tem. Seleciono trechos do seu relato na Claudia (revista que é o quarto órgão de imprensa referenciado nesta postagem), onde vemos que o combate materno contra a doença e suas decorrências se iniciou em 1981:
“Aos 22 anos, eu era uma menina ansiosa para engravidar. Estava recém-casada com o cineasta Miguel Faria Jr., planejei com ele a gravidez e curti. Fiz cursos preparatórios, li muitos livros, sonhei com um parto natural, tomei sucos naturebas e só caminhava de manhã, com o sol mais fraco. Mas o nascimento de João, há 35 anos, foi um baque. Minha coreografia perfeita desandou ali. O primeiro dos meus quatro filhos chegou em 1981 com a rara síndrome de Apert, causada por uma mutação genética completamente desconhecida naquela época. (Ela provoca alteração na caixa craniana, que faz o rosto ficar disforme. Ocorrem comprometimento intelectual, problemas na fala, visão e audição. O bebê apresenta os dedinhos dos pés e das mãos unidos). Houve uma certa rejeição quando vi meu filho. Esperava voltar da maternidade e entrar no quarto decorado com rendas e cortinado de príncipe carregando uma criança cor-de-rosa. Deitei no berço um bebê ligado a uma sonda, com a cabecinha cheia de ataduras. Surgiu a grande pergunta: ‘O que será daqui para a frente?’
“(…) Toda vez que ele entrava no centro cirúrgico, vinha a dúvida: ‘Será que é isso mesmo?’ Como os médicos não conheciam casos anteriores, fomos agindo sem saber ao certo quais seriam as sequelas. Aquela pessoa indefesa, pequena, toda recortada… O pós-operatório de crianças é cruel; a gente fica arrebentada junto. Contava com a ajuda da minha família, especialmente da minha mãe, que ficava com João por longas temporadas enquanto me esforçava para desenvolver minha carreira, fazer shows, trabalhar em estúdios (tem nove discos gravados). Eu acreditava que, se não fizesse isso, me deprimiria e seria horrível para ele.”
É indeclinável buscar forças, não propriamente sublimar, mas entender que as fatalidades fazem parte da vida de todos nós. Meu filho viajou para a eternidade (postagens “Meu Velha”, neste blog), eu e a mãe (Tereza Padilha) do Tiago nos desesperamos e, passado um tempo, o luto foi embora (malgrado ele não acabe nunca) e retomamos nossa trajetória em prol das nossas duas filhas, Patrícia e Mariana. E o fizemos, respeitadas as devidas proporções, da mesma maneira que as duas heroínas desta postagem – vislumbre da necessidade de amparo de par com resiliência na medida e enquanto se vive neste plano. Prossigamos com a mãe do João.
“Mas, há outro lado maravilhoso, de que me orgulho: ver como João vingou, a alegria que tem ao sair sozinho, escrever… E como recebe ajuda de muita gente – pessoas que agarrei para estarem no nosso barco. Por exemplo, a escola que aceitou sua presença diferente entre os demais. Concluo que foi importante brigar tanto e não sucumbir diante da dor e das impossibilidades. Vi crescer um ser humano raro, com deficiências que me chamaram para ser uma mulher tão útil. É claro que há muito preconceito. Essa é uma das partes mais difíceis de lidar. Não aprendi até hoje. Machuca quando alguém desvia o olhar do João ou faz perguntas tolas, como: ‘Ele nasceu assim?’ Fico chateada mesmo, com a humanidade. Assim como quando leio sobre pais abandonando filhos com microcefalia. Não sou craque em lidar com isso. Quando João nasceu, vários amigos se afastaram de nós. Interpretei como uma reação de quem vê na deficiência do outro as próprias mazelas. Felizmente, meu filho não se abala com o preconceito. Ele ri. É superior. Tem uma autoconfiança impressionante, (…) Aprendi com ele que ser seguro de si passa longe da bela forma física e está relacionado àquilo que se constrói internamente. João me transformou. Sem ele, não seria a mãe que sou.
“(…) descobri uma capacidade enorme que ignorava. Passei a amar mais, ter tolerância. Deixei de lado a arrogância, o ideal de excelência e compreendi que não controlo tudo: João estará sempre ali para ser cuidado. Para chegar a esse ponto, precisei cavar a generosidade dentro de mim. Ir lá no fundo e aceitar. É necessário compreender o mistério da vida e o que de fato ocorreu com você. As pessoas falam em religiosidade, mas não aceitam o imponderável. Isso é Deus. É o hibisco branco que nasce entre hibiscos vermelhos. Coisas que acontecem, são da vida e provam que a gente não pode escolher tudo. Lutar contra, querer saber o que foi roubado de você é sinônimo de frustração. Não bota ninguém para a frente. O que me empurrou foi ter compaixão, abraçar quem estava do lado, aceitar e amar.”
Para quem porventura já se restabeleceu, já recuperou os sentidos após deparar com tudo isso, a próxima etapa, melancólica, belíssima, premonitória (olhemos ao redor o mundo de agora), é ler a letra abaixo e ouvir a música (ou vice-versa), dada à luz no disco intitulado, vejam só, A Barca do Sol, cantada pela Olivia Byington, também mãe do Gregório Duvivier, que homenageara seu irmão no prefácio do livro e em artigo na Folha de São Paulo, ambos lavrados em 2016.
LADY JANE
Lady Jane
Respire o cheiro dos esgotos no chão
Sob essas catedrais de Babel…
Ah Lady Jane
Eu sinto o gosto dos esgotos no chão
Sob essas catedrais, sob essa escuridão
Os edifícios tem de cair
Ah Lady Jane
Toda esta Terra vai se consumir
Com seus mistérios e uma fogueira vai queimar, vai
queimar…
Lady Jane,
Oh, Lady Jane
Eu tive um sonho estranho, de morte…
#Luciano Magalhães Melo
#Natalia Jereissati
#Síndrome de Apert
#Olivia Byington
05/03/2024
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