Folha Centenária (IV)
A vaidade é uma das características do ser humano. Às vezes discreta, como a minha. Somos todos vaidosos, uns mais que os outros. Gostamos
e precisamos do reconhecimento e do aplauso do outro. É uma fraqueza dos seres humanos.
– Tostão –
É consabido que lista de melhores é coisa aleatória, lacunosa, arbitrária. Pode ser pior se marcada pela presunção de quem a elabora, vítima duma comichão, duma vontade de se autoinserir no rol dos(as) notáveis. Disso não vou padecer aqui, não milito na imprensa.
Se me indagam quais os(as) profissionais dignos de integrar a relação dos(as) maiores jornalistas tupiniquins da atualidade, vou logo arrolando, por ordem alfabética: Dorrit Harazim, Elio Gaspari, José Nêumanne, José Roberto Guzzo, Mino Carta e Zuenir Ventura. Tirando o Nêumanne, prestes a comemorar setentinha, o restante anda (com saúde e vigor, assim desejo) próximo dos oitenta e até dos noventa anos de idade. Não há mais alguém do ramo, abaixo das três faixas etárias, que mereça figurar nessa seleção? Decerto que sim – porém, com o cabedal dessa turma, nutro lá minhas dúvidas.
Depois de redigir e ler com detença o parágrafo imediatamente acima, notei que a listagem contém seis indivíduos, e não sete, número que relampejava na minha mente para quantificar a formação original do time de futebol soçaite do clube da imprensa. Pelejei, pelejei, e não consegui saber quem era o indivíduo evadido, as imagens do campo mostradas pela TV não estavam nítidas, não permitiam identificação. Atinei que, nas postagens anteriores (Folha Centenária I, II e III), as quais são coligadas a esta, eu prenunciara o uso do VAR, e dele então faço uso agora.
Incrível, a consulta foi rápida e eficiente: o recurso tecnológico tão criticado ultimamente nos meios esportivos evidenciou que o sétimo cracaço era…
… era o Jânio de Freitas, destoante um pouco da coorte de colaboradores e colaboradoras da Folha de São Paulo que derramou elogios ao jornal empregador alusivamente aos seus cem anos de existência. O formidável, quase nonagenário articulista, possivelmente tomado por justa mágoa, contrapôs restrições, mormente a atitudes do Octávio filho, sucessor do Octavio pai na direção do jornal.
Nos 100 anos da Folha, estendi por 40 anos, completados em novembro de 2020, um equívoco que se desdobrou em incontáveis outros. Um telefonema de Boris Casoy, então diretor de Redação, com um convite para minha colaboração no jornal, dava seguimento a uma sugestão de Flávio Rangel a Otavio Frias Filho, que procurava novo ocupante para a coluna fina da página 2.
Não ia durar mesmo, então comecei, não com os esperados seis textos por semana, três cabiam. Não se conversou sobre o gênero de coluna. Meu antecessor viera de décadas como editorialista de política, com estilo e temática dessa linhagem. Esperavam de mim, supus, a continuação assim. Nem tentei: em São Paulo com o nome de Janio, jornalista do abominável balneário do Rio e incapaz de fazer o que não sabia, na certa seria o horror dos leitores experimentais. Corri para uma crônica de fundo político, com temperos improváveis e cardápio variado.
Nosso Janio sóbrio na vida e no jornalismo, lado oposto ao do Janio presidente renunciante e renunciado, pontifica na costura de seu artigo até abrir uma fenda para elogios ao Octavio pai.
Frias pai é merecedor de um reconhecimento ainda não feito pelo jornalismo. Nem mesmo na Folha. A extensão peculiar da liberdade informativa, base da identidade que o jornal veio a formar, só foi possibilitada por um fator contrário à pressão tradicional do poder econômico para conter o jornalismo entre limites estreitos. Tem um nome: é o fator Octavio Frias de Oliveira.
O jornal já se tornara o polo da rejeição pública à ditadura, com a campanha das Diretas Já induzida por Otavio. No regime civil, manteve a posição privilegiada com o jornalismo crítico aos problemas governamentais da abertura. E “esse movimento [do jornal] veio acompanhado do exercício do jornalismo investigativo”, como disse a O Globo, sobre o centenário da Folha, o presidente da Associação Nacional de Jornais, Marcelo Rech. “A Folha não inventou o jornalismo investigativo, mas a denúncia da fraude na licitação da ferrovia Norte-Sul (…), em 1987, foi um divisor de águas.”
Deu-se uma corrida obcecada às revelações do jornalismo investigativo. O que só foi possível porque Frias acionou uma capacidade extraordinária de reduzir ressentimentos e obter o convencimento dos atingidos, nos interesses e no prestígio, pelas revelações da Folha. Aos atos traumáticos do jornalismo, foi comum seguir-se imediata operação de Frias, regada a simpatia natural e completada com a oferta de espaço à resposta do atingido —argumento definitivo da inexistência de qualquer propósito que não o jornalismo democrático. A Folha compunha uma identidade única.
Autor dessa matéria sobre a ferrovia, à época uma verdadeira bomba, um escândalo (se bem me recordo, o resultado da licitação saiu, dissimuladamente, nos Classificados muito antes de acontecer a sessão de proclamação do nome das empresas vencedoras), nosso Janio de Freitas chega ao trecho mais contundente, o registro mais crítico da atuação do jornal que o tinha no seu quadro de pessoal, antes portanto de terceirizá-lo.
Os olhares de mútuo entendimento entre mim e a Folha macularam-se no governo Fernando Henrique. Desde a campanha eleitoral, toda a “mídia” serviu a ele, não só ao Plano Real e sua eficácia anti-inflacionária. O senso crítico e a responsabilidade social e institucional reprimiram-se. Houve muita ilegalidade e muita imoralidade, mas o comprometimento político e partidário contrapôs-se, com mais força, à crítica necessária e ao jornalismo investigativo.
O governo Fernando Henrique foi um período tão nefasto para a “mídia” —não considerado o aspecto financeiro, de grandes benefícios— que essa influência vigora até hoje. Mostrou-se em todas as campanhas eleitorais desde aqueles anos 1990. Fez o grande espetáculo da barragem protetora às violências judiciais e políticas da Lava Jato de Sergio Moro e Deltan Dallagnol. Mostra-se na complacência com a corrupção dos Aécios do PSDB. Já se entorta para a eleição presidencial de 2022.
E os estilhaços do tiro da misericórdia, disparado de espingarda calibre 12, atingem não apenas o tucanato e a chamada República de Curitiba, senão que timbram em questionar a postura da empregadora Folha por haver relegado Janio de Freitas a uma, me expresso desta maneira, discreta e isolada mesinha da redação, assediando um dos mais capacitados e éticos jornalistas do país.
Das crônicas de fundo político, o anteparo da Folha me levou a uma coluna de informações quentes e buriladas. Daí, isolado, passei à reação ao deletério fernandismo-peessedebismo. Por fim, terceirizado, a expor percepções perdidas ou relegadas no afundamento do país em crise total e mortal.
Quarenta anos que sinto sem divisões anuais, volume uniforme de tempo, nada que desejasse reviver. Os meus 40 carregam a satisfação de três contribuições aos 100 da Folha: logo aos primeiros textos, tratar o assunto militares como qualquer outro, contra o velho tabu; aproveitar os desequilíbrios de Gilmar Mendes e invadir a intocabilidade do Supremo, com mais um tabu que caía; e revelar, com a Norte-Sul e muitas outra fraudes desvendadas e anuladas, a corrupção que é a alma do “desenvolvimento” no Brasil.
A imprensa está em crise, mundo afora. A Folha merece corrigir seu caminho para vencer mais essa pressão.”
A quinta postagem sobre o tema, eu a providenciarei em 2121, já então durante os festejos dos 200 anos de existência da Folha.
Até lá.
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05/04/2021
(332)
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