Nossos filhos, filhas, coincidências
Minhas postagens ventilam assuntos nem sempre alegres. Dramas afloram, experiências contristadoras ressurgem aqui e ali, decerto angustiando as poucas pessoas que se dão ao trabalho de lê-las.
Seja como for, o que se encontra abaixo reportado é uma exortação que nos faz resistir, que sem hesitações nos compele a arrostar os reveses da vida. É uma carinhosa resposta, pela mesma via, a e-mail por mim dirigido ao Marco Antonio Pontes, pai do Marco Antonio Velasco, brutal e covardemente assassinado há vinte anos em Brasília por um bando de celerados.
Ousei, pela correspondência eletrônica, me aproximar do grande jornalista no intuito de trazer à colação a luta permanente de todos aqueles e aquelas que perderam filho (o meu, Tiago, falecido em 1983; vide minha homenagem neste blog – “Meu Velha” I a V).
O engajamento do casal (a mãe, Valéria Velasco) que brindou o mundo com o garoto Velasco é admirável e encorajador, daí me ser defeso sonegar tal registro.
“Perdoe-me!,
caro Marcos,
se atraso três meses a resposta a suas comoventes mensagens — e-mail e anexos. Acredite: perdi-as em algum desvão de precários arquivos e só agora, ao reorganizá-los, resgato-as e leio.
Pois este quase xará leu-lhe a carta com simpatia, curiosidade e dosada emoção, ante as coincidências que apontou. Já o pai comoveu-se, muito além do que habitualmente se permite um velho cultor do estoicismo, na leitura das crônicas em que doridamente, porém com surpreendente objetividade, relata o que sofreu.
Mas você não me entristece. A emoção sentida, sobretudo pelo carinho (e as fotos!) nos relatos sobre o pequeno Tiago foi até consoladora: recebi e tento retribuir solidariedade e a solidariedade, que nos faz humanos, consola.
Vivi um longo tempo sem conseguir falar da morte de meu filho, tentativa de não pensar para não renovar o sofrimento. Refugiei-me, primeiro, na luta que empreendemos Valéria e eu para que o crime não ficasse impune. Foram intermináveis semanas até que os ‘menores’ (?) da gangue homicida estivessem devidamente ‘acolhidos’ (??) nas tais ‘medidas educativas com privação de liberdade’ (???), nos termos eufêmicos do Estatuto do Menor. Depois longuíssimos meses até o julgamento dos outros bandidos, afinal condenados. Dever cumprido.
Escondi-me da dor também sob a responsabilidade: eu tinha funções executivas no governo do amigo Itamar Franco e tal ônus de certa forma eximiu-me de assumir a enormidade da tragédia que se abateu sobre a mãe, as cinco irmãs de meu filho-xará e este pai meio dopado pelos subterfúgios que forjou.
Só coisa de ano e meio depois, passados os julgamentos dos facínoras e o paroxismo do trabalho num governo curto em muito tínhamos a fazer — fizemos; de minha modesta posição pude orgulhar dos feitos –, como que acordei da letargia emotiva e sofri, exponencialmente, a dor. A partir de então consegui administrá-la, falar e sobretudo escrever sobre o sofrimento.
À época repercutia intensamente assassinato de Daniela Peres, a jovem atriz filha da escritora Glória, autora de novelas da Globo, de quem Valéria tornara-se amiga na extensão da solidariedade entre mães sofridas. Para ajuda-las na campanha que empreenderam contra a impunidade participei de encontros, fiz palestras e principalmente escrevi artigos; expus-me, disse do carinho de meu filho, do buraco que a ausência abriu em minha vida. Até que de tanto escrever, falar, desnudar-me a perplexidade fez-se revolta, a revolta transformou-se em saudade e a saudade, doída embora, apaziguou-me.
Tudo isso foi possível porque, primeiro, assumi como se minha fosse a indignação das famílias de Daniela Peres, de João Cláudio e de todas as que anonimamente sofreram (sofrem) catástrofes que tais; em seguida converti insubmissão em ação concreta contra a ignomínia, a partir do sentimento solidário; e sobre solidariedade passei a escrever.
Imagino, terá subido calvário semelhante você, que alia emoção e razão nas belíssimas crônicas que compôs, especialmente as cinco de seu ‘Velha’. Este provecto jornalista, calejado em muitas lutas e consequentes vitórias e derrotas, enxuga as lágrimas e retoma a objetividade para constatar as coincidências que identificou e anotar outras.
Marco Antônio, meu filho, como o seu Tiago deixou-nos em 1993; há uma semana dei-me conta outra vez de quê, passados exatos 22 anos, como nos anteriores a saudade persiste, jamais deixará de doer.
Também como você tenho uma filha Patrícia, que aos onze anos levou ao sepultamento do irmão uma braçada de flores que colocou, aos soluços, sobre o caixão.
Releve se demais me estendi nesta tardia, catártica resposta. E aceite meu abraço fraterno.
M. A.”
09 de setembro de 2015
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