Parque da Cidade (II)

1) Campos de futebol de areia

Na minha infância e adolescência, bati muita pelada em chão de barro ou de areia.

Minha concepção de futebol era e é esta, uma turma é formada aleatoriamente e começa o racha. As regras consuetudinárias são rigorosas: mesmo sem ninguém conhecer ninguém, divisão dos times equilibradíssima, ruins de bola (como sabíamos?) pro gol sem dar um pio; bola batia na mão, principalmente sem intenção do peladeiro, de costas e olhando pras estrelas, não cabia discutir nada, batia-se a falta; estourada era da defesa e acabou; bola saía, ou não, pela lateral dava confusão de pelo menos vinte minutos; bola por debaixo das pernas, meia-lua e principalmente chapéu, suprema humilhação, vaia dos gatos pingados em volta do campo (hoje, os coxinhas da televisão chamam de caneta, drible da vaca e… nem nome tem o consagrador, pra quem dá, balãozinho…).

http://lafora.com.br/2008/06/cannes-08-na-areia-short-list/
http://lafora.com.br/2008/06/cannes-08-na-areia-short-list/

Recém casado, fins de 1974, ditadura ainda soltando fogo pelas ventas, passei razoável temporada jogando aos domingos de manhã no campo de futebol que havia na 112 Sul, superquadra meio civil, meio militar, abaixo da 312 dos empregados do extinto IBC, entre eles, minha tia Celia, pobre torcedora do Menguinho e em cuja casa bebíamos café maravilhoso, do tope do colombiano (e olha que não sou chegado à rubiácea). O areal depois se tornou num prédio residencial com apartamentos de preço agiado certamente.

A rapaziada entendia do riscado. E quem perpetra estas mal ajambradas linhas não destoava tanto de seus pares (relevem a máscara). Entre os da plêiade, pontificava um general (seria um brigadeiro?), encarnação de uma mistura de Juninho Pernambucano com Seedorf. Dependendo do par ou ímpar, ora no meu time, ora no time adversário, o alta patente, marcado à distância, pela idade e pela farda virtual (quem tem, tem medo), o educadíssimo velhote, quase setentão, cabeça branquinha, cara de vovô sueco, tratava com carinho e proximidade a brazuca, bom de bola paca. Não me lembro se pertencera à horripilante linha dura, torço pra que não. Todo mundo morria de medo dos milicos, de qualquer milico, até mesmo se estivéssemos numa prosaica filla de agência bancária. Mas na areia convivíamos pacificamente com o simpático velhote desportista.

Mais prafrentemente (obrigado, Odorico Paguassú), eu, “bancarino” (é como refiro meu pessoal do Bacen, seja da ativa, seja aposentado), junto com os “terninho” (é como meu genro Hermes, da invejável profissão de professor de academia de ginástica, alude à turma dos advogados), disputei alguns campeonatos de futebol na OAB-DF. Organizadíssimo, regulamento mais rico e analítico do que nossa vigente Carta Magna, do que o Código Civil de 1916, o torneio abrigava larga faixa etária, 20 a 50 anos, muitos da qualidade técnica do ancião acima mencionado, ou melhores, muito melhores jogadores (por onde anda um dos craques do meu time, o Caputo, não o Carlos Eduardo, ex-ministro do TSE, meu colega de UnB, não o ministro do TST?). E os juízes? Juízes, não. Árbitros, única denominação permitida àqueles que corriam o campo com o apito na boca e sem o brega anel vermelho . O que faziam esses homens de preto (infelizmente, ainda não atuavam as belas bandeirinhas – os burocras do futebol as chamam de “assistentes”)? Respeitosamente, cheios de temor reverencial, arbitravam, dirigiam-se aos jogadores com um “calma, doutor”, um “levanta, doutor”, um “doutor, pode bater a falta”.

Por que parou? Parou por quê? Parei especialmente por causa disso. Isso o quê? Pô, boa parte dos terninho preocupava-se mais com as normas, com os dispositivos regulamentares do que com o futebol. Bastava um pé de meião destoar do outro – um, vermelho vivo; o outro, vermelho um pouco mais esmaecido – para que os “legalistas” não concordassem com o início da peleja (o termo é apropriado). Partida terminada, os do time perdedor requeriam invariavelmente ao Supremo Tribunal de lá, mais importante que o STF, anulação do jogo e consequente perda dos pontos. Provida a reclamação, surgia o campeão moral e eles comemoravam, nem aí. Se o grande velhinho Ulisses Guimarães apitasse por lá, iria se cansar da exortação, “Vamos jogar, vamos jogar”. Nada de tapetão

O circunlóquio já deu. Voltemos ao Parque da Cidade.

O negócio (com trocadilho) é realizar uma licitação. A firma sagrada vencedora no certame passaria a explorar economicamente a área, cercando os campos, já com grama artificial (hoje, quase tudo é artificial. Fazer o quê, né?), e pondo alcolchoados, desses de ringue de box, em todos os postes e estacas para evitar se machuquem os burguesinhos que pagaram uma nota preta para jogar futebol (alguns dirão soccer) tal qual o Justin Bieber, iconoclasta biônico, a pichar muros protegido por “forte esquema de segurança”. Falando mais sério, tenho pra mim que o espaço com cinco, seis, sete campos de futebol de areia – até agora, uma desolação só, totalmente esquecido – poderia continuar sem craques (não ao crack, sempre) mas ficaria animado, teria vida, depois da maciça e constante ocupação pelos peladeiros.

http://unidadenoticias.com.br/wp-content/uploads/2015/06/Futebol-socaite.jpg
http://unidadenoticias.com.br/wp-content/uploads/2015/06/Futebol-socaite.jpg

 

08 de dezembro de 2013

(032)

mmsmarcos1953@hotmail.com

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *