Acordes ressonantes

O nome da clínica radiológica não revelo nem sob tortura em uma sala de raio X (muita gente diz Ráu X). Posso, no entanto, afirmar
que é o mesmo do sobrenome dos irmãos indigenistas do Brasil, famosos no mundo inteiro, e de um grande amigo meu, hoje ministro do Superior Tribunal de Justiça, merecidamente.

Dirigi-me para os lados da LBV e do Campo da Esperança
(quem não conhece nem nunca ouviu falar de lá se encanta
com essa poética denominação) com objetivo de atender expressa determinação de meu novo ortopedista. Novo porque o “velho”,
de quase 10 anos de “casamento”, ele Flamengo e eu Vasco, expulsou-me com sonoro chute no traseiro (como diriam os norteamericanos
e um francês da Fifa) e passou a cuidar somente de ombros e joelhos – o meu problema é coluna, bombardeada por drones nas regiões
da cervical e lombar.

Então, atinentemente a minha fulgurante trajetória na malha médica (expressão do grande João Ubaldo Ribeiro), noticiemos essa recentíssima ressonância magnética, de longa duração e alcance por explorar o norte e o sul das costas numa só assentada, experiência inédita para mim.

É notória minha subserviência à turma de branco – mas com ressalvas. Encaro o aparelho, sim, desde que eu não tenha de entrar na “câmara mortuária”, aquela que fica atrás da cortininha e, uma vez transposta,
joga o claustrofóbico nas gélidas profundezas,
sem brigadista para salvá-lo.

Sou conduzido à geringonça modernosa pela enfermeira Marta. Deflagra-se a angustiante associação: Marta, Marta Suplicy, suplício.
A eficiente profissional é mandona paca, como felizmente quase todas
as mulheres. Dou um grau no “céu do simulador” e fico menos intranquilo: o túnel era relativamente alto e largo e, quem sabe,
não esmagaria meu peito nem me roubaria todo o ar rarefeito
no ascético ambiente.

Deita aqui, seu Marcos”.

Difícil saber o que me desfibrou mais, se o “seu Marcos” (logo eu,
um menino) ou a voz prussiana de comando da chefona de uniforme alvo e carranca cinzenta. Em seguida, delicadamente ordenou
(uma contradição entre termos) que eu deitasse no iole,
repousasse a cabeça e escolhesse “imexível” (obrigado, Magri) posição do pescoço para evitar prejuízos no desenvolvimento do exame.
Já na posição horizontal, barriga tanquinho (com pouca roupa)
para cima, iniciam-se os procedimentos de “imobilização”: nuca encaixada no garrote vil; almofada debaixo das pernas pra mode
de grudar a coluna na superfície; uma espécie de bolsa entelada
na barriga; um praticável em cada ombro; por fim, e não menos importante, mão na campainha para pedir socorro (se acionada, uma vergonha. As mulheres têm medo de baratas
mas enfrentam com indiferença hospitais e clínicas médicas);

Caracterizado de motoboy paulistano, depois do acidente numa marginal, vejo a maca deslizar solertemente no rumo do túnel (é agora que infarto). Não, o negócio é pensar em coisas boas,
crer que tudo é divino e maravilhoso, nada de brumas, só ventos refrescantes. Movido (sem trocadilho) por esse propósito, imagino
que aquela abóboda logo ali em cima (quebomsefosseláencimão) vai propiciar espetáculo digno de planetário (em funcionamento). Que surjam no infinito as estrelas, os planetas, “tu pisavas nos astros distraída”, os meteoros, os cometas, as luzes piscantes, a entorpecer aquele pobre homem pateticamente estirado. O inebrio durou pouquinho e cedeu lugar à asfixia. Vem à lembrança a bela e brava personagem do filme do Tarantino que, após se debater no interior
de indestrutível sepultura, consegue a lá James Bond escapar daquele tampo de concreto e aflorar à superfície.

Decerto, eu não o conseguiria. Aquele sinalzinho, aquele bimbalhar
de claustrofobia começava a ser leve e traiçoeiramente ouvido por quem, sem embargo, estava com os ouvidos tampados pelo fones postos pela competente Marta. Vozes do além: “Seja corajoso, seja homem”, diziam, cada um a seu tempo, meu bisavô, meu avô, meu pai… Dominei o pavor, o medo fóbico, o pânico e passei novamente
a me ter em alta conta.

Estava nessa segurança toda quando a Marta iniciou o tiroteio. O que
era aquilo? Bonnie and Clyde? O Poderoso Chefão? Os Intocáveis? Onomatopeias de enlouquecer (“chomp, chomp”, “brrrrrrrrrrr”, “clang, clang”, “vruuuuuum”), bate-estaca, lixadeira, serra elétrica, makita, alarme antiaéreo, britadeira… Será que, dentro da cabine de isolamento, a Marta se transmudara em percussionista infernal?

Devo admitir que balancei e quase apertei a campainha dos covardes. Hora de invocar mais uma vez meus ancestrais. Fui bem sucedido
no intento, contornei a coisa, passando até a gostar do jogo (foi ele mesmo, o GB, quem inventou a expressão?). A guerra prosseguia. Tranquilão, eu me mexia só para devolver a saliva e aliviar a respiração opressa. Lá de dentro, a Marta tonitroou: “Nada de engolir saliva senão vamos ter de repetir o exame”

Pronto, esqueci o barulhamento e passei a brigar com o óleo de rícino que encharcava minha boca. “Tudo bem aí, seu Marcos?” Como responder? Esqueci o reiterado e ofensivo “seu”, levantei o dedo
pra cima à maneira agradecida dos motoristas nas tesourinhas
de Brasília. Minha boca havia se transformado numa piscina de ondas (em funcionamento). Pensei em cuspir, babar, fazer que aquele mar revolto escorresse aliviadamente por meu pescoço. Era optar por isso
e ser chamado de “velho babão”. Isso não. Numa licença poética, engoli em seco e nessa agonia passaram-se anos e anos até a enfermeira
dar o aviso de encerramento do round. Marta, àquela altura minha fada, desandou a me desapetrechar e me vendo lívido, com boca de siri
e bocheça de Fofão, mandou (o estilo renasceu) que eu corresse ao banheiro para me livrar daquele líquido que encharcava língua, palato, aftas, dentes permanentes, dentes nem tanto. Não deu tempo, a lata
de lixo ali na porta fez as vezes de cuspideira dos tempos do império.

Ressuscitei.

Sobrou o indeclinável dever de enfrentar o laudo do radiologista
e a fatura, a ser paga a maior parte pelo meu convênio; mas ainda assim o valor pendente vai corroer meu bolso.

Todo esse palavrório, toda essa besteirada, tudo isso somente
para lançar a seguinte indagação, abordando realmente o que interessa:

QUANDO É QUE OS ATORES E AS ATRIZES DESTE PAÍS PODERÃO TER UM PLANO DE SAÚDE DECENTE E QUE BENEFICIE
TODA
A CATEGORIA?

 

29 de outubro de 2013

(017)

mmsmarcos1953@hotmail.com

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