Memórias/Memorialistas (XVIII)

http://kdfrases.com/frase/137765
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Em prosseguimento a nossa viagem ao passado, cumpre assinalar, sem embargo, que não são poucos os críticos literários a desabonar o gênero memórias. Alegam que os autores desse naipe estão mais próximos da ficção, tendem a edulcorar a narrativa, distorcendo fatos de arte a torná-los proezas dos escritores, que aparecem na fita (a propósito, literatura no cinema nem sempre dá certo) como paladinos da justiça, do bem querer, da desambição, do despojamento.

Declaro-me suspeito para abordar o assunto. Aprecio biografias (as não autorizadas costumam ser as melhores), os memorialistas me fascinam – até mesmo quando ocasionalmente aumentam um ponto. Não é o caso, obviamente, do trio brasileiro da minha preferência, ao qual, se não tiver sido expulso do blog,  pretendo um dia ajuntar o Veríssimo (o pai). Dos belíssimos solos de clarineta (I e II), extrairei passagens para inserção de igual sorte neste tópico de assumidas reminiscências sumidas há muito no tempo e no espaço.

Por ora, mais Baú de ossos do Pedro Nava:

“(…) Umas imagens puxam as outras e cada sucesso entregue assim devolve tempo e espaço comprimidos e expande, em quem evoca essas dimensões, reviviscências povoadas do esquecido pronto para renascer. Porque  esquecer  é fenômeno ativo e intencional – esquecer  é capítulo da memória (assim como que o seu tombo) e não sua função antagônica. Na recordação voluntária não podemos forçar a mecânica com que as lembranças nos são dosadas. Os fatos sumidos nos repentes, em vez de todos, em cadeia, voltam de um em um. Às vezes, um só. Esse se oferece para suprir e vicariar os que as defesas do psiquismo acham que não é a hora de dar e ele é uma espécie de ‘em vez de’ – acontecimento, imagem que tem de ser coagida pelo consciente, para soltar outros, outros e nos dar aparência do integral não achado, mas construído (tiririca, de que é preciso forçar o minúsculo pé, para fazer sair da terra os metros de raízes ocultas que ligavam moitas emergentes e distantes). Às vezes não adianta violentar e querer  lembrar. Não vem. A associação de idéias parece livre, solta, mas há uma coação que a compele e que também nos defende. (…) Somos conduzidos pela preferência do espírito que é a fuga, distração, descanso lúdico… Ave solta… Sua alteração, como que sua doença: o martelamento obsessivo que sucede no remorso, na saudade dos mortos, na dor-de-corno – em que tudo é pretexto de volta à imagem iterativa, dolorosa e adesiva, que nos tem – ai! na gosma do seu círculo concêntrico. Pássaro no visgo… No que se precisa esquecer, nisto, a  memória  é exímia. (…) Duas coisas sucedem ou são feitas no mesmo dia. Entretanto o tempo igual passa desigual sobre cada. Ao fim de anos, uma parece remota e a outra lateja presente e quando o acaso de nota tomada, de diário escrito, mostra-as do mesmo dia – ficamos varados de pasmo. É por isso que Proust dizia que nossa memória habitualmente não dá lembranças cronológicas (…).

“(…) Há assim uma memória involuntária que é total e simultânea. Para recuperar o que ela dá, basta ter passado, sentindo a vida; basta ter, como dizia Machado, ‘padecido no tempo’. A recordação provocada é antes gradual, construída, pode vir na sua verdade ou falsificada pelas substituições cominadas, pela nossa censura (…).”

 

08 de outubro de 2014

(097)

mmsmarcos1953@hotmail.com

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