Memórias/Memorialistas (XVII)

Recebi de Edmundo de Paulo, meu amigo de Bacen, um e-mail  com o estranho assunto Anosognosia.  É um termo médico. Designa uma situação neurológica (é uma doença? tem cid?) em que, grosso modo e entre outros sintomas, não recordamos temporariamente de alguma coisa, pouco rara para quem tem mais de cinquenta anos (“o que é que eu vim buscar aqui no quarto?”; “qual é o nome mesmo daquela artista de cinema?”; “onde deixei meus óculos?”).

Calculem então as aflições vivenciadas (melhor verbo não existe) por todos os que nessa faixa etária se lançam a revolver (uma arma?) o passado e, ainda, sem detrimento do apuro literário. Há que ter talento, muito talento.

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Da boa, porém dilacerante, brincadeira de esgaravatar fuligens pretéritas, urdida há cerca de um ano neste tópico (será que alguém lê?), participam o Afonso Arinos de Melo Franco, o Paulo Duarte e o Pedro Nava (sou presunçoso). Café com leite, mais leite do que café, dois mineiros e um paulista. Pinçam-se trechos aleatórios das recordações do fantástico trio e está tudo resolvido: o eventual leitor surta, delira, se extasia e sofre também. Nos últimos tempos, a via atrativa é da biblioteca do gênio de Juiz de Fora que se abalou para o Rio de Janeiro com o fim programado de exercer, em muitos anos do Século XX, a medicina (não mercantilizada) nas ambulâncias e nos hospitais da Cidade Maravilhosa, para sorte de seus pacientes.

Voltemos, escondamo-nos dentro do baú de ossos para continuar o mergulho no passado do Nava, no passado de todas as gentes, dos grandes escritores os quais ele homenageia e pede vênia para ingresso no filão das recordações sem saber (ou sabendo) que nos deixaria transidos e fissurados pela expectativa do nascimento dos volumes que se sucediam no prelo.

A casa não é a do Bicanca, a respeito do qual falamos lá atrás, em duas postagens. É uma outra residência, mas desta feita pouco importam seus proprietários, seus moradores. O interesse é pelas trapaças da mente do ser humano, agravadas quando se é “historiador”.

“(…) Então é isto… Nela eu entro, na velha casa, como nela entrava nos jamais. Esse portão de ferro prateado, eu o abro com as mesmas chaves da memória que serviram ao nosso Machado, a Gérard de Nerval, a Chateaubriand, a Baudelaire, a Proust. Todo mundo tem sua madeleine, num cheiro, num gosto, numa cor, numa releitura – na minha vidraça iluminada de repente! – e cada um foi um pouco furtado pelo petit Marcel porque ele é quem deu forma poética e decisiva e lancinante a esse sistema de recuperação do tempo. Essa retomada, a percepção desse processo de utilização da lembrança (até então inerte como a Bela Adormecida no Bosque do inconsciente) tem algo da violência e da subitaneidade de uma explosão, mas é justamente o seu contrário, porque concentra por precipitação e suscita crioscopicamente o passado diluído – doravante irresgatável e incorruptível. Cheiro de moringa nova, gosto de sua água, apito de fábrica cortando as madrugadas irremediáveis…”

Na sequência, para gáudio dos admiradores já então hipnotizados, o memorialista do avental branco destrinchará mais intensamente o padecimento de quem se propõe a lembrar… lembrar… e lembrar.

 

28 de setembro de 2014

(096)

mmsmarcos1953@hotmail.com

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