
A História é amarela 5 (Elis Regina)
Era a primeira vez que Álvaro assistia a uma cremação. Achou detestável e indigno, meter um morto numa fábrica de cinzas, misturado aos restos de outros mortos. Ninguém limpa essa joça. (…) Álvaro esperou que alguém se rasgasse pelo amigo. Mas todos pareciam conformados, ele inclusive. (…) No mais, entediava-se. Culpa da cerimônia ou do calor? Porque o tempo abafa sempre que morre alguém. (…) A morte nada tem de natural. Faltava a revolta, o desamparo, o luto de antigamente. Faltava o morrer de amor.
– Fernanda Torres (livro“Fim”) –
Depois de breve intervalo, o do Retiro o que eu disse, volto a amarelecer este blog. No quinto episódio, numeração aleatória – não a da Veja -, é mais do que obrigatório o chamamento da entrevistadora Regina Echeverria para compartilhar o que pensa da sua entrevistada. A jornalista, misturando cores, traz para o tapete vermelho (item que está na moda) nada mais, nada menos do que Elis Regina, na época de 1978 com seus verdadeiros brilhantes aos 33 anos de idade, uma menina ainda (não confundir com o menino neosantista há pouco regressado à Vila Belmiro).
Uma das mais profundas conhecedoras da pessoa e da carreira da “Pimentinha”, a jornalista sobe ao palco e externa seu entusiasmo com a artista: “Ela conseguia reunir voz, interpretação e escolha de repertório como nenhuma outra”. Biógrafa e xará da artista (vide o livro Furacão Elis, hoje um clássico), Regina Echeverria arrogou-se como desafiante: “Será que algum dia teremos uma cantora do Brasil com uma voz do outro mundo? Acho difícil. Ela conseguia reunir voz, interpretação e escolha de repertório como nenhuma outra”. Esse desafio, em rigor, até eu faria, moleza, moleza. De 1968 a 1978 e de 1979 até o presente, não surgiu no Brasil cantora alguma desse gabarito. Cantor – já existia um, apenas um, que felizmente sobreexiste e viaja no Trem Azul com a gente. Ele, mesmo, Milton Nascimento, o Bituca.

Sou fofoqueiro. Revelo alguns trechos da entrevista, evitando poluir a transcrição com minhas intercalações.
– Aquele engarrafamento me deixou uma impressão muito forte, principalmente porque eu estava grávida e me senti indefesa naquela hora. Tinha helicópteros de um lado, cavalos de outro, gente correndo por todos os lados. E eu estava ali, sem ter escolhido aquilo. Estava fechada dentro de um táxi, com medo, sem poder falar com o chofer, porque você nunca sabe com quem você anda, e o Ubaldo tomou conta de mim.
Nesse compasso, anota-se que Ubaldo, o paranoico era mais uma das criações do genial Henfil. O vacilante personagem, encartado em tirinhas de jornais e revistas, apresentava-se com medo de tudo e de qualquer coisa, enxergava milicos em todos os lugares. A palavra retorna para a Elis.
– A analogia veio depois, porque na hora você faz a fotografia, a ampliação vem depois. Quer dizer, assisti, ao vivo, à falta de respeito que está solta no ar. A falta de respeito existe para com o rio, a pessoa, a árvore, o passarinho. Esse desrespeito, na verdade, criou uma situação de impasse. Você sabe que o sinal de trânsito só vai ser aberto quando o guarda resolver abrir. Enquanto isso, você está dentro de um táxi e tudo acontecendo. Você imagina saídas, mas o sinal não abriu, o que podemos fazer? Ficamos sentados dentro de um táxi, numa transversal do tempo, esperando. Não te perguntam nada, não te pedem opinião;
– A partir do momento em que resolvi que minha arte deve ter ligação com a realidade em que vivo, mínima que seja, lamento imensamente a cara amarrada, a falta de espaço, a falta de amigos. Também não fui preparada para isso, é o que me está sendo dado para digerir. Gostaria que fosse diferente. Mas também, como a maioria das pessoas, estou esperando o guarda acionar a mudança de cor no sinal;
– Enquanto isso, eu canto um sinal de alerta.
Havia sinal de alerta, havia sinal fechado. E nessa música do Paulinho da Viola, hino metafórico, permanente tensão entre o desespero da solidão e o otimismo, a interpretação da Elis vai sacudir, vai derrubar toda a turma que insistia em acusá-la de alienação.
– Mostrar o momento político de impasse em que vivemos e o resultado dos momentos políticos que nos trouxeram a esse impasse. O partido político com o qual você conta para ser de oposição arregla e 41 saem da sala, se escondem debaixo do tapete ou no banheiro, só pode ser. Isso é uma porcaria quando você está nas portas do 15 de novembro e tem de votar nesse partido de novo. Agora, vai votar no outro? Não, vota nesse e continua tudo na mesma. Esse é o impasse, a falta de escolha, a falta de espaço, de ar, de confiança, de relaxo;
– Parti do princípio de que uma cabeça conturbada não consegue organizar atos lúcidos. Então, acho que corri ao sabor do vento numa determinada época da minha vida. Mas agora, quando estou agindo, agitando, sentindo capacidade para desenvolver, criar, retomar e iniciar uma série de coisas, não é possível fazer julgamentos. Julgar uma pessoa de 33 anos chega mais ou menos às raias do ridículo.
Com o episódio das Olimpíadas do Exército, a coisa pegou mais ainda. Sempre que provocada, a Elis timbrava em explicar, justificar sua participação no evento, em 1969.
– Eu cantei nessas Olimpíadas e o pessoal da Globo também participou. Todos foram obrigados a fazer. E você vai dizer que não? Eu tinha exemplos muito recentes de pessoas que disseram não e se lascaram, então eu disse sim. Quando apareceu isso, eu procurei o Aldir Blanc e disse: “Poxa, que sacanagem”. E ele falou: “Você cedeu como cederam os 90 milhões”. Agora, é fácil acusar. Quero saber o que essa pessoa estava fazendo quando eu estava cantando nas Olimpíadas. E tem mais, numa situação excepcional, idêntica, eu não sei se faria de novo. Porque eu morro de medo. Faço todos os espetáculos me borrando de medo todos os dias. Faço, mas com medo. E se mandar parar eu paro, porque medo eu tenho.
Finalizo. Até hoje, eu não sei os motivos pelos quais o apelido de Elis era Pimentinha. Maldade? Injúria? Nossa maior cantora era um docinho de coco.
– Eu não tenho a menor intenção de ser simpática a algumas pessoas. Me furtam o direito inclusive de escolher. Sou obrigada a aceitar quem passar pela minha frente. Me tomam por quem? Uma imbecil? Então eu não tenho gosto, não tenho preferência, não tenho padrões, modelos, nada disso? Sou algo que se molda do jeitinho que se quer? Isso é o que todos queriam, na realidade. Mas não vão conseguir, porque, quando descobrirem que estou verde, já estarei amarela. Eu sou do contra. Ninguém vai me dirigir não;
– Sou a Elis Regina de Carvalho Costa que poucas pessoas vão morrer conhecendo.
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28/02/2024
(376)
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Retiro o que eu disse
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