A História é amarela 3 (Chico Buarque)
Nestes tempos, nos dedicamos a reescrever o passado. A gente, que tem a triste mania de esfarrapar as palavras, usar tanto até que elas pareçam vazias.
– Ana Paula Lisboa –
Continua nossa viagem em tons amarelos. A meta agora é a singradura de águas musicais. Na rota talvez nos deparemos com o marinheiro que lá atrás, em 1988, a brisa soprando-lhe nos ouvidos, proclamou que viria aí bom tempo. Ele acertou na sua previsão porque a partir daí o Brasil começou a sedimentar seu processo de cancelamento do autoritarismo, vívido e cruel no período 1968/1978, trazendo a lume os trabalhos de nossos(as) Constituintes.
Esse homem do mar, como quer que seja, amparou seu raciocínio otimista calibrando tudo o que passara na vida até aquele momento e, portanto, não havia que esmorecer. O devir se entremostrava venturoso e estimulante.
Aliás, um episódio bobinho, agora mera curiosidade, mas que naquela época de ditadura militar afligia um pouco. Incomodado com as músicas sistemáticas de protesto político, João Figueiredo, iracundo (lembra alguém hoje?), declarou à imprensa que preferia muito mais a fase romântica do Chico Buarque. Ao que o nosso Popeye lírico devolveu na lata: eu também gostava mais da fase romântica do general.
Doutra feita, em expedição terrestre, parou num prédio da Marginal Tietê e, provocado pelo entrevistador (Tárik de Souza) das Páginas Amarelas, desandara a falar, temperando sua intervenção com críticas aos órgãos públicos que obstavam a criação artística através da censura oficial.
Desnecessário anotar que nessa conversa a dois, mantida no distante ano de 1971, nosso personagem, então com 27 anos, já era, como se diz hoje para o bem ou para o mal, celebridade nacional por virtude de seu talento. E realmente desde então, transcorridas seis décadas, os brasileiros e as brasileiras o mantêm inabalável no posto de um dos maiores gênios da música popular brasileira.
Vejamos o que disse o menino torcedor do Fluminense, filho de um dos maiores intelectuais do país e cantor/letrista/poeta/compositor que já enfileirava, entre muitas outras obras primas da música, A Banda, Roda-Viva, Pedro Pedreiro, Sonho de um Carnaval, Quem te viu, quem te vê, A Rita:
- A partir da música que fiz para a peça Morte e Vida Severina, foi que comecei uma coisa minha mesmo. Alguns sambas fizeram sucesso e ficou essa coisa de dizerem que só faço samba. Isso me atrapalha um pouco;
- Eu me lembro de que ouvia Chega de saudade a tarde inteira, umas cinquenta vezes seguidas. Aí, pegava o violão – eu e um amigo que tocava bateria, o Oliver -, e a gente tentava pegar as batidas do João. E é por isso que eu toco violão errado até hoje: comecei a aprender não foi nem de “olho”;
- Acho que cada música tem seu ritmo. Ela nasce com ele. Às vezes acontece de eu fazer a coisa num ritmo e depois mudar. Não é “eu hoje vou fazer tal ritmo”;
- A que eu fiz brincando é Deus lhe pague. Mas essa por enquanto está censurada. A outra, que se chama Construção, não foi censurada. Em termos de composição, eu estou num embalo muito bom, fazendo muita coisa, preparando meu disco. O problema é que estou com um medo danado de mandar músicas novas para a Censura, porque a proporção está assim: de cada três músicas, liberam uma;
- É claro que cheguei à autocensura. Mas, dentro desse limite que já me coloquei, acho que ainda tenho campo para fazer o negócio. Esse tipo de música que tenho feito, que para mim é uma coisa nova, é a razão de ser de fazer um disco novo. Elas estão dentro de limites que eu acho que no espírito da Censura podem passar. Agora, se eles me fizerem recuar mais ainda, eu paro. Quando eu mando três músicas para a Censura e me liberam uma, essa não me dá vontade de gravar;
- Tenho feito shows, durante e depois do sucesso de Apesar de você. Mas com a Censura a coisa acaba, porque a gente se apresenta em cima de um sucesso, e sem sucesso não tem muito que fazer;
- Eu estava me mantendo na Itália. E sei que, se eu for pra lá, me mantenho, mas tenho de estar lá e trabalhando. O artista médio de lá vai a todos os programas de televisão, dá entrevista a todas as revistas, e eu não estou mais a fim disso, não. Acho que foi bom estar lá;
- Se eles acham que eu sou o cara que fez A Rita, então vai ver que sou eu. Mas eu, me vendo de fora, sou mais o cara que fez Olê, Olá ou Pedro Pedreiro;
- Já Morte e Vida Severina foi um trabalho de equipe, eu ouvi o palpite de todo mundo, me imbuía do espírito do espetáculo Foi um trabalho diferente, de fazer música para verso, que nunca mais eu fiz. Sempre faço mais verso para a música, porque acho que tenho mais habilidade com as palavras, sou mais técnico, conheço mais a gramática que a teoria musical. (…) Porque eu sempre fui bom aluno de português e nunca fui bom aluno de música;
- Depois de gravar, no estúdio, parece que perde o encanto. Parece que ela (a música) perde o encanto. Parece que ela acabou de ser entregue: está feita, está gravada, saio do estúdio e parto para outra. Nesse caso, sou péssimo profissional como cantor. Mas, como compositor, acho que é uma reação lógica;
- (…) hoje eu tenho um certo equilíbrio financeiro, vamos dizer, que me permite, por enquanto, não ser homenageado. Naquela época não tinha muito como optar. E não é bem que estava deslumbrado com o sucesso – mas é quase isso. Estava achando divertido, tudo muito fácil. Era fácil ganhar dinheiro, fazer sucesso. E isso tudo era muito perigoso.
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30/11/2024
(373)
mmsmarcos1953@hotmail.com
Um comentário
Raul Curro
Sensacional! ADOREI ! ! !
Muitíssimo obrigado!
Grande abraço,