Memórias/Memorialistas (XXXII)

Falei que iria evocar a velhota numa outra ocasião. Mentira. Foi eu sentir o aroma das flores e rapidamente me arrependi da protelação. A presença da avó do Pedro Nava se adensara e não havia como ignorar sua experimentada presença no roseiral com mais de cem variedades, rosa guardião, rosa marnel, rosa palmeirão, segundo nos conta o neto, até então admirado. 

“(…) Viçavam em tufos, coberturas, cachos; brancas, do amarelado do marfim, ou do esverdeado das águas límpidas; brancas, compactas como o jaspe ou translúcidas como as opalas; de cor amarela-clara e da de ouro-pálido; vermelhas do escarlate do sangue arterial ou do rubro do sangue venoso; ou ainda, solferino, ou arroxeadas, ou quase negras; as vestidas de róseo-vivo ou empalidecendo num róseo-azulado, de asfixia. Fechadas em botões góticos, entrefechadas, entreabertas, abertas num giro amplo de pétalas barrocas.”

Recém-ingressamos na primavera, o que torna pertinente, oportuna e ilustrativa a descrição da flora. Sucede que não era essa a nossa vontade predominante. Onde o perfil da jardineira de presença noticiada bem na abertura desta postagem? A gente permanece sentindo o perfume das flores para, sem nos dar conta, assistir às pinceladas do Nava iniciando o esboço da mãe da mãe dele.

“Minha avó orgulhava-se da posse dessas obras-primas que rivalizam com outras perfeições da natureza como a laranja, o ovo, o diamante, o ouro, a pubescência. Não admitia seus ramalhetes em jarro e só gostava de apreciá-las no pé – exalando à noite, orvalhadas na manhã, crestando ao sol, despetaladas ao vento. Só excepcionalmente colhia uma para dar a visita (…) ou ia buscar entre seus espinhos as que serviam sua farmacopéia doméstica como a rosa-de-cão ou silva-macha, a rosa-damascena, a rubra ou de Provins – com que ela e a Justina manipulavam colírios, laxantes, hemostáticos, constipantes e o mel rosado caseiros.”

Se ainda não lhes foi possível ter a exata noção de quem era a mulher que se cansara das estrepulias do Major, passemos a tesoura nas flores, crime ecológico, e vamos nos alicerçar nas frutas. Tudo indica que assim, dentro do pomar, nos seja permitido conhecer o julgamento que o menino fazia da avó, uma pessoinha boa se ressaltarmos sua virtude de não engaiolar as flores, criadas em total liberdade não fossem as raízes que, como sói, as prendiam ao solo da casa, uma chácara como nos informa o autor.

“Era sempre pela manhã que minha avó o  (portão) abria e ia tratar das suas árvores de fruta, podá-las, arrancar-lhes as parasitas, livrá-las dos bichos, da erva-de-passarinho, dos fios-d’ovos do cipó-chumbo. Às vezes, simplesmente para dar sua volta de silvana. Estou a vê-la de costas, coque meio descido sobre a nuca, a saia arrastando nas folhas secas, atarracada, rápida, trocando passos lépidos, dando com os braços, atenta a cada galho, a cada flor, a cada fruto. Arrancava aqui um ramo seco, desfolhava ali, sacudia mais adiante, colhia e ia pondo o que apanhava na saia de cima, dobrada como embornal. Eu trotinava atrás. Às vezes, ela sentava num toco, numa pedra, num resto de muro, olhava as árvores, ouvia os pássaros, fitava os raios de sol que a folhagem filtrava, desfiava e debulhava no chão como os punhados dum milho todo dourado, vivo e mais movediço que o azougue.”

 Principio a escutar reclamações dos leitores e das leitoras deste blog.  Rodada boa parte da fita, ainda faltam seguros elementos para se enxergar a esposa até um certo tempo do Major, a Maria Luisa do roseiral. A missão, como se sabe, fica a cargo do memorialista, que, encoberto pela vegetação cúmplice, enfim nos apresenta o retrato (impiedoso) de sua progenitora.

“Comia das suas frutas, sem me oferecer. Minto; deu-me, uma vez, para provar, um caroço de manga já chupado, quente e babujado por ela. Foi engulhado que aproveitei esse único gesto amável que conheci de minha avó materna. Jamais vi jardineiro, hortelão ou capineiro cuidando de suas plantas. Ela é que o fazia, com o bando das negrinhas e – sob a invocação de Flora e Pomona – rebentavam flores e frutos de suas mãos. Semeava, mudava, transplantava, reentocava, enxertava, podava, estrumava, colhia. Sabia os meses, os signos, as estações, os solstícios e as luas de cada vegetal. Germinal, floreal, frutidor, messidor…”

 

25 de outubro de 2015

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mmsmarcos1953@hotmail.com

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