Obsessões musicais (XVII)

A beleza e a cultura melhoram as pessoas, acendem
uma luz nos olhos. E os prédios que acolhem essa cultura fazem
da cidade um lugar melhor. É o oposto do bombardeiro. Um edifício público, se bem feito, é uma máquina, não de guerra, mas de paz. Construir é um gesto de paz.

Renzo Piano

Pernambuco é fortíssimo culturalmente. Mas nós, do Teatro Mapati, nunca colhemos oportunidade de nos apresentar em algum de seus cento e oitenta e cinco munícipios. Logo nós, que, sobretudo no projeto Arte sobre Rodas (executado em nosso caminhão-palco), já percorremos desde 1991 mais de cento e cinquenta cidades do Brasilzão (pensei em não usar o aumentativo, patriotada característica destes penosos tempos). Passou da hora de o Mapati mergulhar no estado (Olinda, inevitável na futura jornada) e também em Roraima, Amapá, Alagoas, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, enfeixando assim todo o país.

Assinado o compromisso, proponho minorar os efeitos deletérios dessa omissão: vou trazer a lume um luminar da terra onde os holandeses sentaram praça e se deleitaram. O homem com pinta de motoqueiro libertário da Rota 66 do sertão nordestino se descobriu cineasta recentemente, mas meu coração bobo não se lhe admite tais veleidades, deseja ver o artista mantido por toda a eternidade preso na trama da música.

Nestas duas alvoradas sombrias, o nosso artista desembainha versos agoniantes. Num deles, por exemplo, nos remete, assim como quem não quer nada, a uma conversa de um industrial com uma, digamos, pequena ave.

wallup.net

“(…) entre um Conde e um passarinho, prefiro
um passarinho. Torço pelo passarinho. Não é por nada. Nem
sei mesmo explicar essa preferência. Afinal de contas, um passarinho canta e voa. O Conde não sabe gorjear nem voar. O Conde gorjeia com apitos de usinas, barulheiras enormes, de fábricas espalhadas pelo Brasil, vozes dos operários, dos teares, das máquinas de aço
e de carne que trabalham para o Conde. O Conde gorjeia
com o dinheiro que entra e sai de seus cofres, o Conde
é um industrial, e o Conde é Conde porque é industrial. O passarinho não é industrial, não é Conde, não tem fábricas. Tem um ninho, sabe cantar, sabe voar, é apenas um passarinho e isso é gentil, ser um passarinho.”

Pouco importa que eventualmente Alceu Valença não haja explicitado, na referência à crônica do Rubem Braga constante do livro de mesmo título, a prevalência da natureza em face do poder da alta burguesia industrial de antanho representada pelo Conde Matarazzo. O duo de poetas – o primeiro, pernambucano; o segundo, capixaba -, na mistura de duas obras então separadas no tempo (1936/1983) e no espaço (São Bento do Una-PE/Cachoeiro do Itapemirim-ES), emulou dupla afinadíssima, aquela do timaço do Santos dos anos de 1960, Pelé e Coutinho, centroavante que dias atrás foi marcar seus gols no firmamento voando junto aos passarinhos, empobrecendo o mundo dos gramados e deixando mais órfão ainda o Rei do Futebol.

Numa clicada, depara-se o auxílio luxuoso da Zizi :

Noutra, vocês porventura sobreviventes (eu morri), o enlevo é com a Mônica e as xilogravuras caviar no mel.

Na primeira manhã

Na primeira manhã que te perdi
Acordei mais cansado que sozinho
Como um conde falando aos passarinhos
Como uma bumba-meu-boi sem capitão
E gemi como geme o arvoredo
Como a brisa descendo das colinas
Como quem perde o prumo e desatina
Como um boi no meio da multidão

Na segunda manhã que te perdi
Era tarde demais pra ser sozinho
Cruzei ruas, estradas e caminhos
Como um carro correndo em contramão
Pelo canto da boca num sussurro
Fiz um canto demente, absurdo
O lamento noturno dos viúvos
Como um gato gemendo no porão
Solidão.

– Alceu Valença –

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24/03/2019

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mmsmarcos1953@hotmail.com

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