Anjos de barro (IV)

E qual é o meu vínculo de família? Tentarei sintetizar. Mas irei fazê-lo daqui a pouco.

“(…) Tinha certeza que só o movimento, muito movimento iria garantir a sobrevivência. A morte para nós não é uma figura de retórica, andamos com ela de mão dadas, ela é real, palpável. Viver comandado pela dignidade, aliada à raiva e à eterna vigilância. Não relaxar, nunca relaxar. Tensão permanente. Ou fantasia à solta. Se derrubado na cama por um derrame na articulação, desligava o corpo e ligava o rádio. Escutava as músicas me imaginando o cantor ou o baterista ou aquele da guitarra. Já fui Elvis Presley, Luiz Gonzaga, Gilbert Becaud e cada um dos Beatles. Sem dinheiro para freqüentar a piscina do América e aprender a nadar, assistia tudo das grades, vivendo na pele daquele nadador que ia e vinha, ia e vinha. Tudo era transformado em instrumento de luta contra a hemofilia. Até o sexo. Não sei bem como, mas a hemofilia para mim era uma mulher. Claro que sei os antecedentes. A mulher não tem hemofilia, logo ela é o ser perfeito. E, se ela transmite, só ela pode aliviar. Ainda criança, quando tinha dor, procurava no corpo das primas, tias e irmãs, o alívio imediato. Pedia que uma delas pisasse com o pé descalço na minha mão sã. A dor gostosa substituía a outra dor. Os pés das mulheres passavam de fetiche a analgésico. Quanto mais lindos, mais fulminantes. Fui crescendo e aquilo ficou inconveniente. Mas a imaginação substituiu. Me esfregava horas pensando numa mulher forte, atleta, perfeita, me esmagando com seus pés. Nossa Senhora esmagando a cabeça da cobra hemofilia. E foi pensando em conquistar a Mulher que passei a desenhar, dançar, escrever, enfim, me transcender”.

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http://www.fiocruz.br/biosseguranca/Bis/infantil/hemofilia.htm

               Vejam que fui bem sucedido na empresa de pedir ao Henfil viesse assumir seu posto de nosso narrador (revel até então) para dar mais notícias de sua trajetória de dores e privações, que o acompanharam desde a infância, década de 1940, até sua despedida de nós. Junto a vocês, com o coração na boca, peito aberto, vou sangrando (obrigado, Gonzaguinha):

“Sofistiquei a luta. A ginástica intuitiva cedeu lugar à fisioterapia e hoje à antiginástica. Tenho algumas baixas, sempre devidas à vida sedentária que passei a levar, sentado horas e horas desenhando ou escrevendo ou lendo. Porém, foi justamente este desenvolvimento intelectual que me deu armas para descobrir um novo aliado; o cérebro. Descobri que sob o seu comando poderia simplesmente paralisar o início de uma hemorragia. Dava ordens para o dedo cortado não sangrar. Mentalizava o percurso do coágulo nos rins, que doía feito pedra. E assim conseguia expelir em minutos o motivo da dor insuportável. Para isto, acionava um grande defeito, o meu caráter autoritário. Gritava para o dedo: – NÃO VAI SAIR, PORRA! PÁRA DE SANGRAR SEU FDP, etc e tal. Agora, se fico inibido ou disperso, não funciona (…)”

 

26 de fevereiro de 2014

(051)

mmsmarcos1953@hotmail.com

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