Arte sobre rodas (IV)
Desta feita, não sei se daquela feita era Catalão ou Goiatuba.
Caminhão-palco pronto, íamos dar início ao espetáculo quando desaba chuva bíblica. De par com imediata necessidade de proteção
dos equipamentos de luz e de som, caberia rapidinho dar abrigo, sobretudo (sem trocadilho) aos atores e atrizes, de modo a evitar gripes
e resfriados, com todas as consequências nefastas para a voz de quem logo em seguida vai encenar – e quem faz teatro de rua e, como no nosso caso, nas ruas é escolado nisso.
À medida que o aguaceiro despencava, elenco e equipe técnica
se entreolhavam transidos pela costumeira preocupação – quando
os céus derem trégua, a turma vai se dispersar e aí bau-bau (desencavei mais uma) espectadores e espectadoras. Essa realidade, minha gente,
é o terror do mundo artístico, às vezes com preeminência sobre a falta de grana, o nada de cachê. Não vale computar o indefectível cão vira-lata e o dançante bebum, parceiros que não faltam nunca e chegam sempre antes de todo mundo, formando trôpega dupla Cosme & Damião. Portanto, anotem:
o “exibir-se” para ninguém solapa o ego de qualquer artista.
Despontando a bonanza, corre-se de volta às posições originais
e reassume cada qual sua função, passa-se o rodo (sem malícia; literalmente) o palco do veículo e nos praticáveis, prescrutam-se todos
os recônditos atingidos pela voragem pluvial, atentamente seca-se aquilo que restou encharcado pelo despejo das nuvens, os figurinos, os objetos de cena, a fiação elétrica – nessas situações, pródiga em choques
e curtos-circuitos. É de contemplar nossa turma na azáfama de enxugar tudo, tudinho, porque, como acima observado, quem se encontrava debaixo das árvores de copas ralas, dos toldos esvoaçantes, dos guarda-chuvas ordinários e ficara com a roupa molhada devido ao vento
em razante delibera abandonar o local, dando azo àquele fenômeno
que os economistas (cito-os por elegância) chamam de “efeito manada”.
O que fazer para atingirmos a “reversão das expectativas”
(mais um jargão da Economia)?
Nada. Nada mesmo. Tudo estava milagrosamente resolvido. A massa
se adensou, se encorpou, se aproximou ritmadamente da frente
do nosso veículo para ser dominada por um cidadão forte pra caramba, saído não se sabia de onde. Minhas senhoras e meus senhores
que porventura leem este modesto blog, era uma estrela, um verdadeiro artista de rua. Sua performance radiante, no meio do povo, abarcava segmentos vários, ginástica, capoeira, caratê, dança, equilibrismo, mímica intercalada por falações dignas do Homem da Cobra na venda de suas beberagens. Para delírio da plateia, havia de tudo
na programação paralela, ou melhor, preliminar: no esporte, cambalhota, pirueta, salto mortal, rabo-de-arraia, voadora, tacle;
nas artes cênicas, carranca, assovio, murmúrio, careta, caras
e bocas, impropério, sorriso traiçoeiro e entusiasmado. O performer costeava o alambrado (obrigado, gauchada) soltando um olhar cúmplice para nós do teatro e, ainda com energia sobrando (deduzimos depois, era o pó branco), declarou finda a atração e começou a subir
uma das escadas do palco de nosso caminhão em busca de…
“Captei a vossa mensagem, amado mestre”, lampejei. E emendei de mim
para mim: “Esse cara merece receber alguma gratificação, segurou
o público numa boa, por mais de meia-hora, enquanto a gente limpava tudo para a anunciada encenação”. Eu não tinha dinheiro em espécie suficiente para esse inesperado cachê. Em regra,
viajávamos (e viajamos) com pouca grana, pagando tudo com cheque
ou cartão de crédito, até para evitar furtos ou roubos em hotéis
ou nas estradas desse imenso país, muitas das quais percorridas à noite ou durante a madrugada. “Eureka!!! Vou dar pra ele um monte
de brindes do Mapati, quem sabe assim eu não agrado o homem.” Depois do aperto de mão, acho que rolou abraço no suarento providencial, fui entregando: camiseta, cd infantil, caneca e outros itens, tudo de excelente qualidade e que decerto ele iria presentear algum parente ou guardar para si por muito tempo como boa e marcante lembrança de nossa articulada passagem por lá.
Acabada a encenação, aplausos de todos os lados (olha a imodéstia), pedidos de autógrafos e de fotos com as crianças e os atores e atrizes ainda caracterizados, “Vai ter amanhã de novo?”, “Infelizmente, não, viajamos daqui a pouco” (não se pode virar arroz de festa). Inicia-se
a desmontagem e o “novo integrante” da trupe sobe novamente
no caminhão, carregando (como conseguiu?) um monte de cervas, de refris, de sandubas, parecia uma árvore de natal. “Cacete, como conseguiu?”, eu pensava, já preocupado com as finanças de nosso amigo. Ele, na tora, “respondendo” meu pensamento (eu não disse
que o homem era uma fera?). “Passei todas as coisas nus cobre
com aquela turma ali”. Sábio conviva, vale mais, muito mais
a confraternização do que esses badulaques, que, ao fim e ao cabo, mostraram ter lá sua liquidez. Bendita chuva.
27 de outubro de 2013
(016)
Lojinha da hora
Acordes ressonantes
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