Lady D’Arbanville (III)

Barulho de sirene, zum de besouro um imã (obrigado, Djavan). A ambulância entra na quadra cantando pneus – prudentemente(?), o marido fizera o pedido do socorro médico antes do buzinaço na portaria que interrompera meu namoro. Supervisionados pelo médico e pelos paramédicos, os maqueiros conduzem a deusa exangue para o interior do veículo que vemos por aí avançando os sinais de trânsito para salvamento de alguém. A verdade verdadeira é que nunca nos imaginamos lá dentro; nós, os imortais, sempre achamos e acharemos que o carro branco de cruz vermelha foi feito para os outros.

Sem a momentânea e incômoda companhia do vizinho – que se consumia prorrompendo em choro (abandono? remorso? os dois?), sentado num daqueles gélidos, torturantes bancos de hospital -, eu me via péssimo na madrugada de transtornos, errando pelos longos corredores de paredes descascadas do pronto-socorro. Minha torcida era para que o relógio voasse e o comunicado verbal ou boletim da equipe de branco nos tranquilizasse, a paciente apresentava sinais de recuperação importantes (a macaquice brasileira não larga essa palavra usada à exaustão pelos acadêmicos norteamericanos).

No retorno ao meu trabalho, creio que três dias após a tragédia, meus colegas correm ansiosos para mim. Perguntam-me por que e como a moça se jogara da janela do meu apartamento, consoante informavam os jornais. Liberdade de imprensa absoluta, biografias sempre livres para evitarmos o vitupério, mas não devemos, não podemos editar os fatos e erigir versão descolada da verdade material. Não, não fora daquela maneira, da altura mais baixa. O salto para a eternidade acontecera na janela de outro apartamento, muito mais alto, do nosso prédio. Morávamos no segundo andar (ap. 204) da segunda prumada; o casal que se desaviera residia mais próximo do terraço, exatamente no quinto andar de outra portaria, a primeira.

Já inscrito na OAB, com alguma noção das linhas do Direito, eu intuía que meu depoimento, seja na polícia, seja no juízo competente, poderia demarcar o destino daquele infeliz. Dúvida na alma: como temperar minha fala e meu registro sobre o encontro dos quatro convivas no tangente à determinante, ou não (obrigado a quem inspirou o Caetano Veloso), dissidência do casal de arte a que o Estado não absolvesse um culpado ou condenasse um inocente?

Sem carregar nas tintas nem descarregar nas tintas, reportei ao delegado a briga conjugal, ele já de posse do laudo do perito consignando, inclusive, os arranhões e riscos no parapeito, resultado dos movimentos da vítima que se debatera, ou na empresa de se jogar lá de cima malgrado o impotente apelo do marido para que ela não se suicidasse (versão dele), ou na tentativa (vã) de lutar contra o mais poderoso, o homicida que com ela coabitara antes, muito antes da Lei Maria da Penha e quando parte da sociedade brasileira coonestava crimes passionais em nome da honra.

Nunca me intimaram para depor na Justiça, se é que os procedimentos evoluíram para lá. Até hoje, ignoro o desfecho nem me interessei por sabê-lo.

http://www.deviantart.com/art/Day-2-Sleeping-Beauty-196268543 - by Beautiful-Nightmaree
http://www.deviantart.com/art/Day-2-Sleeping-Beauty-196268543 – by Beautiful-Nightmaree

Dama d’Arbanville

Minha Dama d’Arbanville,
por que você dorme tão imóvel?
Eu te acordarei amanhã
E você será meu tudo, sim, você será meu tudo.
Minha Dama d’Arbanville, por que isso dói tanto?
Mas seu coração parece tão silencioso.
Por que você respira tão baixo, por que você respira tão baixo?
Minha Dama d’Arbanville,
você parece tão fria esta noite.
Seus lábios parecem o inverno,
Sua pele ficou branca, sua pele ficou branca..
Eu te amei, minha dama,
mas em seu túmulo você descansa,
Eu sempre estarei com você
Essa rosa nunca vai morrer, essa rosa nunca vai morrer.

Obrigado, Cat Stevens.

 

09 de fevereiro de 2014

(046)

mmsmarcos1953@hotmail..com

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