Memórias/Memorialistas (XXIV)

Me desprendi do Baú de ossos.

De conseguinte, começou minha síndrome de abstinência – tonturas, calafrios, vertigens, suor frio, mal estar generalizado. Fui superando a crise à medida que lobrigava no horizonte o segundo volume das memórias. Fi-lo (vejam que nesse ponto não renuncio à linguagem formal) após leitura do trecho logo adiante transcrito. Nele, aprendi que repasse não era a operação tratada na Resolução 63 do CMN dos meus tempos de Bacen; que não era um quadro de um programa popular de televisão; que dizia – isso, sim – com as pitadas (pintadas?) antropológicas do Gilberto Freyre em Casa grande & Senzala.

“(…) Com a ama viera seu filho, um molequinho fabuloso, cor de havana (aquela negra havia de ter sido repassada por galego), imediatamente en vedete e no colo dos patrões. Gordo, gordo, duma gordura dourada e contagiosa que foi passando para minha irmã. O mulatinho era tão corado que ficava cor de laranja madura, cor de cobre areado. E ria o dia inteiro, babando uma baba de leite e zumbindo que nem enxame de abelhas. Jamais chorava.”

Tal passagem do livro, como todas as outras postadas neste blog sob o título Memórias/Memorialistas (que também contemplam, até agora, Paulo Duarte e Afonso Arinos de Melo Franco), foi aleatoriamente pinçada. Consigno-a não para me trazer dolorosas lembranças de meu filho, senão que no propósito de enunciar, através da formidável escrita do Pedro Nava, os costumes de nossa gente, a mineira, a paulista, a carioca, nas primeiras décadas dos anos de 1900, a ternura, a amizade, o compadrio, a atenção e paradoxalmente o racismo explícito (e tolerado) em quase todos os estratos sociais.
E o gorduchinho que sorria?

“Um dia, ninguém sabe por quê, foi aquela febre e logo as convulsões que só pararam quando ele se inteiriçou num último arranco e amoleceu, morto! no colo da minha Mãe. Ela e a negra, as duas e minhas tias choravam todas taco-a-taco. Sem parar. Meu pai fez questão de enterro de branco e velório como de parente. O defuntinho foi para nossa sala de visitas. Sobre uma mesa coberta de forro de seda e colcha de renda, o caixão. No caixão de rosa e prata, o anjinho. Fizeram para ele uma túnica de Menino Jesus, sapatinhos de cetim pousados num bolo de algodão afeiçoado em nuvem e cheio de estrelas douradas. A testa cingida de uma profusão de flores e fios metálicos que faiscavam como artifício de São João. A linda cor de fruta sazonada do garoto fora substituída por um esverdeado de azeitona.”

http://www.os5elementos.com/ar/sobre-as-nuvens/
http://www.os5elementos.com/ar/sobre-as-nuvens/

As travessuras do Nava de calça curta representavam inconformismo com a morte e todo o cerimonial que a envolve. Quanta lógica na rebeldia do menino que não aceitava que outro menino fosse embora daqui, máxime daquela forma. A rigor, não podia ser atoleimado quem repugnava personagem e figurino, morto e mortalha.
Imperioso resistir, lutar contra a finitude, posto que inexorável.

“Eu não me conformava com aquele aspecto e sobretudo com aquela imobilidade, aquele silêncio, aquele vácuo. Num momento de distração dos grandes, puxei-o pelas mãozinhas e desengrenei os dedos que ficaram apontando duramente para cima. Aterrou-me a rigidez coagulada que senti como uma espécie de resistência, de teimosia, de hostilidade. Aterraram-me o frio daquela carne impassível, a pálpebra de cera que eu abri e que não voltou a descer sobre um olho coberto de cinza. Eu queria arrancá-lo do caixão cujo fundo era alçapão abrindo na ‘treva do chão da cova’. Não pude com o peso. Fui tomado de pânico em que havia aquele pasmo do trem entre o primata antropóide e o bicho homínido, quando pela primeira vez percebeu noutro bruto morto o albor da idéia da própria morte e, em vez de comer-lhe os restos, uivou de horror na escuridão da noite quartenária. A esse clamor inarticulado fenderam-se os céus e apareceu a destra divina para tocá-lo. Adão, Adão com cuja descoberta da morte desvendaram-se religiões, éticas, filosofias, culturas; grandezas, misérias; caridade e massacre; o ódio, o amor. Comecei a urrar também, todos acorreram, tia Candoca, escandalizada, recompôs, morto e mortalha. Meu Pai ficou indignado. Esse menino está ficando completamente idiota! Fui arrastado para fora da sala (Não quero que enterrem ele! Gente! Não quero que enterrem ele!)…”

 

25 de agosto de 2015

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mmsmarcos1953@hotmail.com

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